Do picadeiro para o palco
Programação do Festival Internacional Sesc de Circo e títulos das Edições Sesc revelam a estreita relação entre circo e dramaturgia
Por Gustavo Ranieri*
Há muito que o clown não está mais ligado ao circo; o palhaço deixou o picadeiro para habitar as ruas e os palcos do teatro. Um dos responsáveis por esse movimento foi o mestre francês Jacques Lecoq (1921-1999) e os seus ensinamentos na École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq. Grande pesquisador dos movimentos do corpo, escreveu ele em Le théâtre du geste que a “busca de seu próprio clown reside na liberdade de poder ser o que se é e de fazer os outros rirem disso, de aceitar a sua verdade”. Assim como, em sua opinião, o “clown põe em desordem uma certa ordem e permite assim denunciar a ordem vigente”.
Essa relação cada vez mais íntima entre circo e dramaturgia foi e é investigada profundamente por outros grandes nomes do estudo cênico. Philippe Gaulier, 76, por exemplo, que foi professor por muito tempo na escola de Lecoq até ter a sua própria, adentrou esse tema com perfeição no livro O atormentador: minhas ideias sobre teatro (Edições Sesc, 2016). Bem antes dele, o assunto também foi trazido por Tristan Rémy (1897-1977), autor do fundamental Entradas clownescas: uma dramaturgia do clown (Edições Sesc, 2016).
Essas interfaces entre “palhaçaria” e teatro ficam bem visíveis a cada ano por quem acompanha o Festival Internacional Sesc de Circo. E não será diferente na edição de 2019, que acontece em São Paulo de 13 a 23 de junho (confira a programação aqui). Entre os destaques que revelam esse potencial dramatúrgico está o espetáculo Ordinários, do grupo La Mínima, criado a partir do trabalho voluntário realizado com os Palhaços Sem Fronteiras, atuando em campos de refugiados, abrigos, ocupações e locais alvos de bombardeios. A comicidade em cena nasce assim do questionamento sobre a função e inaptidão do palhaço e sobre quem de fato estaria apto para uma guerra.
Fundado por Fernando Sampaio (esq.) e Domingos Montagner, Grupo La Mínima é um dos destaques do evento. Foto: Carlos Gueller
Fundado em 1997 por Fernando Sampaio e Domingos Montagner (1962-2016), o La Mínima investe em dramaturgia elaborada desde o início. “Para nós foi um processo natural já a partir do segundo espetáculo, À la carte, roteirizado pelo Paulo Rogério Lopes e dirigido pelo Leris Colombaioni que, este sim, viu [a dramaturgia] como algo que pouco tinha vivenciado, pela sua trajetória dentro da tradição da palhaçaria italiana. E somou-se a isso, logicamente, a experiência do Domingos na Pia Fraus, uma companhia de teatro e bonecos, que já trabalhava com dramaturgia, sendo em alguma adaptação ou mesmo com criação própria”, conta Sampaio.
Para o criador, a dramaturgia do clown contemporâneo e aquela que conhecemos como parte de uma produção teatral “tradicional” encontram-se de fato mais próximas atualmente nos grupos brasileiros. “Passaram-se trinta anos de escolas de circo em São Paulo e já existe uma legião de novas companhias e atores que buscam e relevam a dramaturgia nos espetáculos de circo. Achamos fundamental esta possibilidade que os palhaços ou clowns estejam a serviço da obra e que atuar em diferentes dramaturgias seja um desafio muito estimulante para esse artista.”
Também na visão dele, esse tipo de desenvolvimento cênico é a única forma para a manutenção de uma companhia de repertório, como a La Mínima. “É fundamental trafegar com essa possibilidade de poder variar histórias, temas, críticas”, aponta Sampaio, que completa: “Por isso mesmo, acho incrível o Sesc apontar a relevância desta relação estimulando as companhias a pensarem nessa possibilidade de ganho para as novas produções”.
*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.
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