Sesc SP

postado em 29/11/2019

A cozinha do artista

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Com primeiro livro dedicado ao gravurista Evandro Carlos Jardim, coleção Arte, Trabalho e Ideal chega ao público para aproximá-lo do gesto da criação

Por Gustavo Ranieri*

 

O que impele um artista a criar? Como se constrói o gesto artístico? Como os aspectos da sociedade estão incorporados nas obras? E no caso de um determinado desenho, por exemplo, por que usar grafite e não carvão (ou vice-versa)? No caso de ferramentas digitais, elas promovem o mesmo resultado que as analógicas alcançavam? É melhor? É pior? É a essência dessas e de tantas outras questões que rege o lançamento da coleção Arte, Trabalho e Ideal, idealizada e organizada pelas artistas plásticas Fabiana de Barros e Marcia Zoladz, e pelo cineasta e fotógrafo Michel Favre.

“Essa não é uma coleção de especialista para especialista, mas sim, feita para se entender o ato artístico. Na cozinha do criador, quando ele vai misturar sal, pimenta e água, como que se prepara essa coisa a que se chama arte? Então, em vez de fazer grandes perguntas baseadas na história da arte, da estética, a gente pergunta: se você usa caneta se chega ao mesmo trabalho que está aqui? Se você usa uma câmera digital, a foto é a mesma se feita em película? Enfim, essas perguntas, hoje em dia, são fundamentais para dessacralizar a distância que há entre o resultado da obra de arte e o espectador”, salienta Favre.

O livro que marca o lançamento da coleção, sob a chancela das Edições Sesc, é sobre Evandro Carlos Jardim, 84 anos, gravador, pintor, desenhista paulistano e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Nome de peso na história da arte brasileira, ele é conhecido especialmente pelas suas gravuras em metal, cujo processo inventa e reinventa desde 1955.

 


Trecho do livro

 

“Eu tive uma relação muito forte com o Evandro, como mentor, e não só eu. Se você pegar na arte brasileira dos últimos quarenta anos, toda a minha geração em São Paulo foi influenciada e formada de alguma forma por ele. Ele é um mestre da gravura, e nos ensinou como devemos nos posicionar diante da nossa obra. Eu gostava de ver ele nas aulas, e não era só uma aula, era ver o artista trabalhar. Ele mostrava para nós, jovens artistas, como se posicionar diante de um material, de uma técnica”, conta Barros.

Por sua vez, Zoladz complementa: “O Evandro foi um artista que se dedicou e se dedica ao que queremos mostrar na coleção, que é como o artista pensa a coisa da arte e do trabalho junto com a sua compreensão do mundo, dentro do seu ideal do artista. Além de ter uma enorme disciplina no processo de criação, ele foi um grande observador da vida na cidade de São Paulo. E é muito importante entender que como o artista trabalha, ele exerce uma função ao trabalhar. A diferença que nos torna quase separados da sociedade em geral, no que se refere ao trabalho, é que este vai além da subsistência, o artista trabalha por sua existência”.

A coleção Arte, Trabalho e Ideal trará como entrevistados criadores de diferentes gerações e foco artístico. Se Jardim inaugura o projeto, formulado por Barros, Zoladz e Favre ao longo de três anos, a segunda publicação, no primeiro semestre de 2020, será com a pintora, escultora e artista intermídia carioca Anna Bella Geiger, 86 anos. Na sequência, o trio de organizadores visitará o trabalho do jovem e consolidado cineasta, artista visual e professor luso-americano Gabriel Abrantes, 35 anos.

Em tempos em que a arte parece ter tão pouca importância para as instâncias governamentais do Brasil, a coleção acaba também, de algum modo, sendo um manifesto, um ato político. “Sendo o artista fruto de toda a sociedade, em seu trabalho artístico ele vai repassar algum posicionamento, alguma crítica política”, conta Favre. Já Zoladz avisa o leitor: “O segundo livro, da Anna Bella Geiger, foca uma artista que é mais explicitamente política no sentido contestatório, como em sua série Bu.Ro.Cra.Cia [realizada dos anos 1970 até 2000]”. Esse olhar crítico ao momento político atual é bem percebido também na arte de Abrantes. “Ele mostra no trabalho dele essa contaminação dos tais da extrema-direita, incorpora esse mundo das novas mídias que governos usaram de maneira imediata e pouco inescrupulosa”, diz Favre.

* Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.

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