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postado em 07/02/2020

Incertezas admitidas, certezas restauradas

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Livro de Georges Balandier nos lembra de que a tríade fundadora da sociologia – Durkheim, Max Weber e Karl Marx – tem de ser constante e criticamente revisitada para iluminar o sentido do presente

Por Edgard de Assis Carvalho*

 

A trajetória do pensador multidisciplinar Georges Balandier (1920-2016) é marcada por uma pluralidade rara nos domínios da fragmentação dos saberes, os quais, cada vez mais, apostam na especialização e na disciplinaridade. Em 1954, ele destronou a característica funcional da antropologia da época com a publicação de Sociologia atual da África Negra, a partir de sua pesquisa no Congo-Brazaville. A noção de situação colonial envolvia um amplo e desigual circuito de dominação que requeria uma visão sócio-histórica das partes envolvidas. Os processos de descolonização desencadeados a partir da independência da Argélia, em 1962, são exemplos cabais dessa mutação. E isso é válido também para os latino-americanos, igualmente colonizados, que presenciaram uma ampla destruição de seus patrimônios culturais ancestrais, desfigurados pela violência mimética da colonização ibérica.

A bibliografia de Balandier inclui 27 livros, além de trabalhos que envolvem ficção, multimídia, crítica, organização de coletâneas, participação no comitê editorial do legendário Cahiers Internationaux de Sociologie, este último de 1965 a 2012.

Originalmente publicado em 2013 na França, O social em tempos de incerteza faz um balanço de ideias, esperanças, utopias, desacordos e desafios de Balandier. Trata-se de uma homenagem, um reconhecimento tardio à grandeza de seu pensamento. Dividido em duas partes: a primeira, que leva o nome do livro, contém onze ensaios de amplo espectro, que nos levam aos territórios por vezes áridos das ciências humanas, a seus fundadores, às bases filosóficas das ciências sociais. São 52 textos agrupados em nove macrotemas; a segunda – Crônicas – inclui artigos e resenhas publicados no Le Monde, que podem ser lidos ao sabor do desejo do leitor.

 


Georges Balandier. Foto: Georges Seguin (Wikipédia / CC)

 

Há destaques importantes. Jean-Jacques Rousseau é um deles, pois seu pensamento está inexoravelmente ligado à política. Fonte constante da desigualdade dos homens, ela amplia exclusões, mal-estares. Com suas máquinas inteligentes e saberes globalizados, a desregulação tomou conta do planeta, e a governança caiu nas mãos dos tiranos da sociopolítica. Essa constatação do autor requer, porém, um retorno histórico ao Iluminismo e, claro, a Émile Durkheim, o grande educador da República, responsável pelo advento da Sociologia como ciência. É preciso resolver antagonismos e contradições entre autonomia privada e pertencimentos comunitários, para que a uniformização da globalização não tome conta de tudo e de todos. A tríade fundadora – Durkheim, Max Weber e Karl Marx – tem de ser constante e criticamente revisitada para iluminar o sentido do presente.

O que está em jogo é o predomínio da razão diante da polifonia de afetos, emoções, desejos, faltas. Empiria ou teoria, eis a questão. A pergunta O que é a sociologia? permanece em aberto. É preciso transgredir para abalar o conforto das certezas. O pensamento sistêmico avançou, mas o sistemismo emperrou a complexidade das análises e impediu a compreensão dos conflitos, contradições e paradoxos.

 


Trecho do livro

 

E o que a antropologia tem a ver com tudo isso? O conflito parental entre Durkheim, falecido em 1917, e Marcel Mauss, seu sobrinho, ilumina a questão. A revolta de Mauss propiciou uma abertura dos fatos sociais para outros territórios disciplinares, como bem percebeu Claude Lévi-Strauss. A etnografia deixou de ser o cerne ou o charme da antropologia, como já foi afirmado. Era preciso interpretar. Roger Bastide, Gregory Bateson, Jack Goody que o digam. Incertezas admitidas, certezas restauradas.

Nesses tempos sombrios de sobremodernidade – conceito de Marc Augé tantas vezes referido nas duas partes –, o retorno aos clássicos é mais que necessário, desde que suas ideias sejam oxigenadas pelas temporalidades e por movimentos históricos contemporâneos. A totalidade é a não verdade, jamais se resume à soma das partes, não é uma feira de “interpretações”, ironiza Balandier. É, isso sim, uma narrativa que pensa o mundo como um todo sempre instável, bifurcado, indeterminado.

Daí surge o entrelace necessário com a filosofia. O mundo contém esferas naturais, sobrenaturais, sagradas e mitológicas a serem exploradas. Não podem mais ser encaradas como expressões da desrazão ou da irracionalidade, como pretendem alguns. O reconhecimento do espaço do político e da natureza do poder requer uma crítica do “provincialismo ocidental”, tema este que será amplamente desenvolvido em seu último livro publicado em 2015, curiosamente intitulado Em busca do político perdido.

 

*Edgard de Assis Carvalho é professor titular de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

 

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