A engenhosa arte da entrevista
Faróis no caos, de Ademir Assunção, celebra o jornalismo como uma autêntica experiência dialógica
O jornalismo contemporâneo acabou por se transformar em uma atividade eminentemente industrial, adotando modernos processos de produção por meio dos quais a notícia é tratada como uma mercadoria de curtíssimo prazo de validade. Nas sociedades modernas, a informação chegou a tamanho estágio de mercantilização que ela não faz mais sentido senão como produto de uma indústria cultural mais preocupada em estimular o consumo de fatos noticiosos do que informar, de fato. O mesmo se pode dizer da entrevista, este engenhoso gênero jornalístico que aos poucos vai perdendo sua capacidade crítica para se transformar em uma ferramenta publicitária, a serviço de toda sorte de promoção pessoal ou corporativa.
Profissionais da imprensa à moda antiga – dispostos a sujar os sapatos, segundo a feliz expressão de Humberto Werneck, para viver as mais ricas experiências jornalísticas – são cada vez mais raros, mas não desapareceram de todo. É o que prova o lançamento de Faróis no caos (Edições Sesc São Paulo), uma coletânea de entrevistas que o jornalista Ademir Assunção realizou para diferentes jornais e revistas ao longo de seus 28 anos de carreira. Reunidas pela primeira vez em livro, tais entrevistas constituem um elaborado jogo de perguntas e respostas com 29 personalidades brasileiras que têm muito que dizer, independentemente de serem elas celebridades ou não.
O jornalista, poeta e escritor Ademir Assunção trabalhou em grandes jornais e revistas brasileiros, como Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, O Estado de S. Paulo, Folha de Londrina, Isto É, Veja São Paulo e Marie Claire. Além de ter poemas publicados em diversas antologias nacionais e internacionais, nos Estados Unidos, Argentina, Peru e México, em traduções para o inglês e o espanhol, ele lançou no Brasil os livros LSD Nô, Cinemitologias, Zona branca, A máquina peluda e Adorável criatura Frankenstein, dentre outros. Letrista de música popular (em parcerias com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan, Ney Matogrosso, Titane, Mona Gadelha e a banda Nhocuné Soul), Ademir é o criador do CD de música e poesia Rebelião na zona fantasma. Afastado hoje da grande imprensa diária, ele edita, em parceria com os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak, a revista literária Coyote.
Faróis no caos reúne as melhores entrevistas realizadas por Ademir Assunção, cuidadosamente selecionadas e reeditadas a partir dos originais. O elenco de entrevistados é digno de nota. O jornalista conversou com alguns dos artistas brasileiros mais radicais e polêmicos das últimas décadas, nem sempre reconhecidos com a dimensão que merecem. E é neste fato que reside o grande mérito profissional de Ademir: não ir em busca de celebridades fadadas aos discursos estereotipados, e sim de criadores que rompem com o senso comum.
Além da condução inteligente e segura das conversas, que demonstra o cada vez mais raro trabalho de pesquisa prévio sobre o entrevistado (os jovens jornalistas de hoje não têm pudor algum em fazer as perguntas mais descabidas por pura ignorância a respeito de quem está diante deles), Ademir manteve na edição do material colhido o frescor e a fluência da fala, sem baratear informações ou fugir de questões complexas. Assim, cada entrevista revela aspectos biográficos, visões artísticas e ideias críticas que, ao mesmo tempo, deleitam o leitor e o estimulam ao pensamento mais denso.
As entrevistas perfazem um arco de mais de duas décadas e meia. A primeira, com Caetano Veloso, foi publicada em agosto de 1985; a última, com o poeta Geraldo Carneiro, em maio de 2011. Nesse período, certamente o Brasil mudou bastante. A imprensa e o jornalismo cultural, mais ainda. Entretanto, os longos diálogos que Ademir travou com seus interlocutores continuam apresentando questões atuais, transmitindo uma riqueza de ideias surpreendente.
Não é sempre que o leitor abre um jornal ou revista e se depara com opiniões tão polêmicas como as do poeta Glauco Matoso, que, aliás, causaram desconforto entre os leitores do jornal O Estado de São Paulo. Ou entra em contato com a visão de mundo habilmente crítica de escritores como Roberto Piva e Sebastião Nunes. Ou se diverte com a irreverência do poeta Paulo Leminski. Ou ainda usufrui o que tem a dizer os compositores Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, o monge zen Kogaku Daiju e Kaká Werá Jecupé, raríssimo caso de escritor indígena no Brasil. Alguns desses nomes, naturalmente, já haviam sido entrevistados por outros jornalistas, mas nem sempre tiveram a oportunidade de expor em profundidade suas ideias, sobretudo a partir do momento em que o jornalismo se tornou uma atividade superficial e sintética. Outras entrevistas foram publicadas em veículos alternativos, como as com os poetas Chacal e Cláudio Daniel, os escritores Nelson de Oliveira e Márcia Denser, o dramaturgo Mário Bortolotto e o quadrinista Marcatti.
No texto de abertura do livro, Ademir Assunção expõe os ousados princípios que pautam sua atividade: “Nunca me preocupei em entrevistar apenas os famosos ou já estabelecidos na cultura oficial. Ao contrário, sabia que muitos que estavam ‘na sombra’ circulando pelas margens, ou completamente esquecidos, tinham o que dizer. Bastava ligar o gravador e, depois, convencer os editores de que as ideias dele mereciam ganhar o mesmo tratamento dado a um artista, digamos, já canonizado. Nem sempre foi fácil. Alguns dos entrevistados, inclusive, não eram muito palatáveis a certos padrões editoriais, devido às suas críticas contundentes, às vezes ao próprio jornalismo cultural”.
Faróis no caos serve de antídoto ao jornalismo twiteiro de hoje, que se satisfaz com 140 caracteres histéricos e vazios. Por meio das entrevistas reunidas, o leitor irá ao encontro de criadores e intelectuais que não somente produzem arte e refletem sobre ela, mas também encarnam tão bem o papel de representantes do sujeito social coletivo. Aqueles que sempre têm coisas desconfortáveis, porém necessárias, a dizer.
Veja também:
:: Vídeo
:: Trechos do livro