Adeus a Carlos Moreira

Um dos mais importantes nomes da fotografia nacional, artista faleceu aos 83 anos, deixando um acervo com mais de 700 mil imagens
Certa vez, em uma entrevista, o fotógrafo Carlos Moreira declarou que o dia em que ele se voltasse ao próprio arquivo, seria um fotógrafo morto, já que estava sempre em busca do novo. Justamente por isso, sua morte nesta última quinta-feira, dia 11, aos 83 anos, é apenas física. Seu trabalho continua a revelar algo sempre inédito, ainda que possa ter sido visto muitas vezes. O artista, vitimado por complicações em decorrência de um câncer, começou a trajetória como fotógrafo no fatídico 1964, primeiro ano da ditadura militar e também o ano em que se formou como economista pela Faap, embora jamais tenha exercido a profissão.
Em vez disso, buscou com a câmera em mãos revelar a cidade, quase sempre São Paulo, mostrar a intimidade, as relações interpessoais no espaço da metrópole, revelar a si mesmo, ainda que oculto, em cada paisagem, em cada recorte. Fez parte do grupo Novo Ângulo, foi professor de jornalismo fotográfico na USP e, depois, a partir dos anos 1990, no M2 Studio, estúdio de fotografia fundado por ele e pela também fotógrafa e grande amiga, Regina Martins. Ao todo, passou cinco décadas fotografando diariamente, somando mais de 700 mil imagens entre analógicas e digitais.
Praça Ramos de Azevedo nos anos 1970
Em 2014, as Edições Sesc, em coedição com a editora Tempo D´Imagem, lançaram Carlos Moreira – São Paulo, reunindo imagens da capital paulista. A organização da obra, que marcou uma exposição de seu trabalho no Sesc Bom Retiro, ficou a cargo de Rosely Nakagawa, curadora, gestora e amiga de longa data. Para homenagear esse que é um dos maiores nomes da fotografia nacional, publicamos a seguir o texto de apresentação do livro, assinado por Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo.
São Paulo é o mundo. Um território capaz de englobar países inteiros, milhares de habitantes de diferentes proveniências, uma cultura local mesclada a influências regionais e estrangeiras, um mosaico jamais acabado, que se transforma dia a dia. Em São Paulo, dificilmente se encontrará um paulistano da gema, cujas origens não levem a lugares distantes e cuja identidade não tenha encontrado na cidade uma boa acolhida, a despeito do sentimento de urgência a pautar a vida por aqui.
Em São Paulo não se vive tranquilo, mas em tensão contínua, sem que esta seja necessariamente considerada negativa. Falamos de uma tensão que move o paulistano, de nascimento ou de coração, a não desistir, a insistir sempre, a suportar pressões e transpor desafios, a estar atento e ser paciente, mantendo alerta seu olhar diante do futuro.
Se essa descrição é capaz de traçar um brevíssimo retrato da São Paulo neste século XXI, há que se ressaltar que a consolidação desses aspectos se deu ao longo dos anos 1900, sem que se assinalasse estagnação no processo de desenvolvimento urbano, cada vez mais complexo e frequentemente desprovido de planejamento, vivido pela cidade.
Floricultura na Avenida Angélica, em 2010
No entanto, observando-se a natureza desse processo, comumente veloz e hostil, percebe-se o comportamento não raro autômato do paulistano, o que evidencia uma aparente indiferença no trato estabelecido por ele com o cotidiano, deixando-lhe escapar a poesia. Mas que poesia é essa, que se edifica sob o concreto, resiste à violência e às dificuldades? Trata-se de uma poesia urbana que foge à obviedade, prima pela nuance e exige de seu observador um olhar obstinado, em busca da humanidade presente na aridez, na astúcia, no abandono da cidade e seus habitantes.
Nessa perspectiva, encontra-se a fotografia de Carlos Moreira, a reunir o cuidado peculiar ao registro documental e o olhar aguçado de um artista que encontra em São Paulo mais do que inspiração, mas sua possibilidade de (re)inventar um mundo sensível e afetuoso que sobrevive em meio à geografia paulistana.
Influenciado por Henri Cartier-Bresson, Carlos Moreira fotografou e permanece fotografando São Paulo. Nas ruas da capital, o artista congelou instantes que se perderam na vida de pessoas anônimas, cuja experiência desapareceria com o passar do tempo e a desimportância atribuída às pequenas atividades do cotidiano. Este livro reúne imagens produzidas entre os anos 1960 e 2013.
Represa de Guarapiranga na década de 1980
Para tanto, Carlos Moreira jamais negligenciou sua curiosidade pela vida ordinária, consolidando, por meio dela, o profundo conhecimento que tinha das ruas e praças, assim como dos rostos que transitavam na cidade. Muito mais do que isso, é o amor pela capital que move o artista, certo de que a discrição, associada ao exercício contínuo da transparência, permitiria a ele captar momentos fluidos, quase imperceptíveis para olhares menos habituados a ver poesia no que não é extraordinário.
Nada há de banal nas imagens de Carlos Moreira, que captura a realidade por meio da simetria, das possibilidades existentes entre o preto e o branco, como também do uso da cor, do exercício perspicaz de composição, sofisticado a cada foto produzida.
Ao publicar o livro de Carlos Moreira sobre a capital paulista, o Sesc deseja fortalecer os vínculos entre os paulistanos e sua cidade, reestabelecendo entre eles o apreço, o cuidado, a possibilidade de se surpreender e alegrar-se, muitas vezes perdidos por aqueles que aqui permanecem sem se desviar de seus caminhos habituais, deixando de abrir suas janelas, temendo perder-se e, por fim, encontrar-se em meio ao desconhecido que chamamos São Paulo.
Avenida 9 de Julho, em 1994