Sesc SP

postado em 27/07/2020

Pina Bausch e a dança que vem de dentro

Retrato da coreógrafa e diretora Pina Bausch | Foto Maarten Vanden Abeele
Retrato da coreógrafa e diretora Pina Bausch | Foto Maarten Vanden Abeele

      


Amores, desejos e fragilidades eram os elementos mais caros à coreógrafa alemã, falecida em 2009, e que completaria 80 anos


Certa vez, Pina Bausch declarou que amava dançar porque tinha medo de falar. Talvez não soubesse – ou soubesse muito bem – que a cada movimento no palco, seu e de sua companhia, a Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, a força era certamente maior do que aquilo que frases e mais frases tentassem descrever. A bailarina, coreógrafa e diretora alemã, cujo nome de batismo era Philippine, completaria neste 27 de julho 80 anos de idade. Diante de seu tamanho como artista, é triste que só tenha vivido 68 anos, de 1940 a 2009, falecendo apenas cinco dias após a detecção de um câncer.

Até assumir a direção da Tanztheater Wuppertal, em 1973, Pina já havia percorrido outros palcos, começando a trajetória aos 14 anos, depois vivendo em Nova York de 1958 a 1962, e, ao retornar ao seu país natal, sendo solista por uma década no Ballet de Folwang até receber o convite para assumir a companhia que, tempos depois, seria rebatizada com seu nome. Se fosse necessária uma definição simples e precisa sobre o trabalho dela, certamente poderia-se dizer que Pina revolucionou a dança ao romper com as tradições, especialmente ao valorizar o papel do ser humano antes da técnica, e colocar as emoções a frente de qualquer roteiro.

Em 2018, pelas mãos das Edições Sesc São Paulo e escrito pelo jornalista e professor Fabio Cypriano, foi lançado Pina Bausch, o primeiro livro brasileiro dedicado a narrar a trajetória e importância da criadora alemã. E para homenageá-la agora, convidamos a bailarina e coreógrafa Morena Nascimento – que trabalhou na companhia de Pina de 2008 a 2010 –, a diretora Inês Bogéa e o próprio Cypriano para que dessem depoimentos sobre, respectivamente, a personalidade, a obra e o legado da coreógrafa.
 


Cena do espetáculo A sagração da primavera, criado em 1975 | Foto Maarten Vanden Abeele
 

VIDA
"Eu sempre percebi a Pina como alguém muito peculiar, que flutuava num outro tempo, num outro ritmo. O ritmo da intuição e da criação, que quase nunca era o mesmo da vida cotidiana. Era difícil ter uma conversa com ela. Como era de poucas palavras, parecia que a sua volta se formava sempre uma camada enigmática e eu gostava disso, gostava de não entender o porquê de algumas de suas escolhas e decisões, que eram sempre surpreendentes. Gostava de entender como me comunicar com ela, descobrindo outras maneiras em mim e na minha dança que nem eu mesma conhecia. Ela era imprevisível como um animal selvagem e, por isso, acho que acabava acessando os instintos de quem trabalhava ao seu lado. Eu me sentia um filhote desse animal mãe selvagem, sentia amor e sentia raiva às vezes, mas sempre muito respeito e admiração, como a gente sente pelas nossas mães.

A Pina afetou e afeta ainda profundamente a maneira como entendo e faço dança. No fundo acho que a gente está sempre em busca daquilo que já se encontra dentro da gente e a Pina estava dentro de mim antes mesmo de eu ir trabalhar com ela. As marcas que ela deixou na minha forma de ser como mulher e como artista são indeléveis e continuam reverberando. Nos meus trabalhos autorais tenho desejo de profaná-la, mais do que endeusá-la. Sinto que faço sempre pequenas homenagens indiretas ao tempo que vivi e a tudo que aprendi com ela, numa tentativa de ressignificá-la e ainda tentar compreender o mistério que ela continua sendo para mim. E acho que isso é uma forma de amor."

Morena Nascimento, bailarina e coreógrafa.


OBRA
"Pina Bausch criou espetáculos a partir do entendimento das relações humanas, trazendo à tona a matéria ordinária da vida – as pulsões, os desejos e as fragilidades – que ecoam em cada um de nós. Ela buscava o que movia as pessoas e a partir de um jogo de perguntas e respostas descritivas, pessoais ou abstratas, selecionava gestos, alterando a forma dos movimentos, construindo cenas e montando um grande quebra-cabeça. Assim como todo tipo de gesto, do sofisticado ao banal, podia se integrar ao idioma da dança, também todo tipo de música cabia, de Schubert a Édith Piaf, de Händel a Caetano Veloso. A força de seu trabalho se multiplica hoje como ondas, em que os movimentos explodem por dentro e nos levam a repensar nas possibilidades da dança em diálogo com o nosso tempo."

Inês Bogéa, diretora da São Paulo Companhia de Dança, documentarista e escritora. 
 

LEGADO
"O legado da Pina Bausch vai além da dança, porque ela acabou falando não somente para quem gosta dessa linguagem, mas para quem aprecia a arte em geral. Ela friccionou a dança com outras áreas, como o próprio teatro, mas também com as artes visuais, a performance e mesmo o cinema. Ela experimentou no palco todas essas linguagens juntas, de uma maneira muito particular. E isso a partir dos anos 1970, quando, de fato, todas essas linguagens estavam se abrindo para falar mais sobre as questões do mundo real. E a Pina foi um nome muito forte nesse sentido; de certa maneira ela liderou esse ímpeto de a arte se aproximar das pessoas e se transformar em algo que falasse do mundo e da vida de cada um. Então, acho que esse talvez seja o grande legado dela no sentido da arte em geral.

Mas também penso que temos outros elementos que vão juntos nessa questão. Se na história da dança há grandes narrativas falando de príncipes e princesas, vemos a Pina falar de cada bailarino, da importância da história de cada um, onde nasceu, o que sentia, quais eram seus amores. Esse é outro elemento bem importante, de dessacralizar a linguagem da dança para aproximá-la de cada um. Outro elemento fundamental, especialmente na contemporaneidade, é que ela não buscava ter todos os bailarinos no auge da juventude e das técnicas perfeitas. Durante todo o tempo em que ela ficou à frente da companhia, de 1973 até sua morte, 11 anos atrás, muitos bailarinos permaneceram ao seu lado dançando até os 60 anos. Então, a essência desse legado é: não interessa como as pessoas se movem, mas o que move as pessoas.

E, finalmente, outro elemento muito importante e também conectado ao nosso mundo atual é em relação ao elenco internacional e a ideia de fazer as peças em vários lugares do planeta. Ela não era uma coreógrafa fechada em seu mundo, mas aberta a todas as culturas. E, hoje em dia, quando vemos o mundo voltado para questões de xenofobia, dessa chamada Guerra Fria 2.0, de China versus Estados Unidos, podemos lembrar que a Pina tinha bailarinos chineses, norte-americanos, brasileiros… A humanidade era uma só para ela e esse é um caráter essencial que faz com que continue sendo lembrada por muito tempo."

Fabio Cypriano, jornalista e professor com livre docência em Comunicação e Artes pela PUC-SP

 

 

Veja também:

:: Resultado de uma pesquisa sobre a peça Água, Fabio Cypriano desvela arte de Pina Bausch

:
O feijão e o sonho: teatro na pandemia

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