Em busca do like
Novo título da coleção Deslocamentos, livro Mídias digitais: cultura, posts e redes foca nos avanços e problemáticas sociais na era dos algoritmos
Os primeiros anos deste novo milênio vieram acompanhados por transformações massivas, estruturadas e impulsionadas a partir de plataformas digitais, efetivando no dia a dia da população mundial o uso de tecnologias, cujo desenvolvimento se deu a partir da segunda metade do século anterior. Em 2020, o acesso à internet é parte indissociável do cotidiano de milhões de pessoas, sendo até mesmo usado pela Unicef como novo indicador das desigualdades sociais no globo.
Em Mídias digitais: cultura, posts e redes, título publicado exclusivamente em e-book e que acaba de ser lançado pelas Edições Sesc São Paulo, o professor e pesquisador Sérgio Branco adentra um dos grandes fenômenos desse período: as redes sociais e a complexidade dos efeitos oriundos delas. Dessa forma, o leitor trava contato com temas tão em voga, como fake news, pós-verdade, desinformação, exposição e privacidade de dados, algoritmos e manipulação.
Para falar sobre esse que é o segundo livro da coleção Deslocamentos, conversamos com o autor. Confira:
Recentemente, vimos o esvaziamento de um comício do presidente Trump promovido pelos fãs de K-pop por meio do app TikTok. Porém, poucos dias depois, a rede de hackers Anonymous disse que o TikTok é um malware operado pelo governo chinês, o que na prática também pode ser uma fake news. Como lidar com essa teia complexa, ora de mobilização digital, ora de espionagem de nossos dados?
Esta teia de informação na internet é de fato muito complexa. A tecnologia digital avançou muito e a primeira característica apontada há vários anos foi de que a internet dava voz a várias pessoas. Fato é que durante décadas nós recebemos a informação a partir de uma mídia centralizada, tradicional, como revistas, jornais, emissoras de tv e de rádio. Mas com a internet a informação passa a ser transmitida de maneira descentralizada, e isso tem aspectos muito bons, como dar voz a minorias historicamente desconsideradas no debate público, mas, por outro lado, foi também graças a essa possibilidade tecnológica que vimos emergir o fenômeno que chamamos de fake news. Hoje estamos numa encruzilhada muito difícil, que é a consequência dessa possibilidade de acesso à informação sem que haja propriamente uma alfabetização digital. Então, as pessoas foram nos últimos anos abordadas por uma série de fontes de informação sem que tenha havido ao mesmo tempo uma educação digital para elas compreenderem que nem todas as fontes são confiáveis, que nem todas as notícias vem amparadas por estudos sérios, científicos, isentos. Para compreenderem como funciona a internet, quais algoritmos manipulam o acesso a essas informações e que existem interesses financeiros por trás de disseminação de informações falsas. Também é importante compreender que somos muito responsáveis pelas nossas informações que trafegam na internet e compreender a importância da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que entra em vigor em breve no Brasil e é também uma resposta do país a uma demanda internacional, ao regulamento de proteção de dados da Europa.
Foto: Reprodução | Unsplash
Ou seja, sem essa educação digital, fica difícil impedir que tais ferramentas digitais de interação e conhecimento não sejam também de manipulação de nossos dados.
Essa manipulação pode ocorrer em diversos níveis, pode ocorrer na manipulação do que eu acesso, porque toda a rede social se vale de algoritmos para oferecer aos usuários aquilo que se acredita ser mais relevante para cada um. É isso que deu origem ao que chamamos de filtros bolhas. Havia uma promessa de que a internet produziria uma comunidade global, em que as pessoas estariam sujeitas a opiniões diversas das suas e isso faria com que elas pensassem, refletissem melhor sobre determinados assuntos, quaisquer que sejam. Mas, na prática, o que aconteceu foi ao contrário, as pessoas se fecharam em bolhas decorrentes de suas interações em redes sociais e essas bolhas levaram ao cenário de opiniões extremadas. Essa é uma consequência um pouco nefasta da manipulação da informação. E isso acontece, inclusive, no que diz respeito ao acesso aos bens culturais. Os algoritmos também passam a oferecer aos usuários do Spotify, por exemplo, as músicas que o programa acha que a pessoa vai se interessar, os filmes que a Netflix acha que vai interessar a determinado usuário. A gente precisa furar esse filtro bolha de alguma forma para ter acesso às opiniões diversas das nossas e para poder refletir sobre elas. A gente só se constrói como indivíduo e se torna uma pessoa mais completa na medida que há uma dialética, que se dialoga com opiniões diferentes, às vezes contrárias. E, a partir desse confronto, se tira uma síntese. É por isso que a educação digital é tão importante, senão a manipulação fica mais fácil. Se você se identifica politicamente com qualquer espectro e só recebe informações sobre ele, você se convence cada vez mais de que aquele espectro político está correto e você se blinda contra qualquer informação diferente daquilo, mesmo que ela seja útil para a sua construção como indivíduo.
É assim que se estrutura a contínua polarização política e ideológica que observamos nas redes sociais, por exemplo?
Essa polarização é em boa parte fruto de um misto da manipulação pura e simples da informação, com uma seletividade de algoritmos e com o comodismo individual. A polarização política decorre dessas três coisas que se relacionam com a falta de educação digital, pessoas incapazes de identificar fake news, ou confortáveis com fake news, porque elas são o reforço ao seu espectro ideológico, e ignorantes sobre como a internet muitas vezes funciona e como os algoritmos atuam para ratificar esse tipo de convicção ideológica.
Foto: Reprodução | Unsplash
Em um dos capítulos do livro você aborda os possíveis desgastes emocionais de quem permanece ininterruptamente conectado. Como você observa essa dependência de estar diante de um smartphone a todo o momento, por exemplo, ainda que a única interação de muitos seja apenas rolar o feed de notícias?
Há relatos dramáticos no livro sobre pessoas absolutamente viciadas em internet. Há razões de natureza biológica, pois as redes sociais são construídas de modo a dar prêmios para as pessoas que fazem uso dela. Quando você publica uma foto no Facebook, no Instagram e no Twitter, ou em qualquer rede social dessas que permitem esse tipo de interação, você fica aguardando a reação das pessoas, quantas pessoas deram um like, quantas pessoas compartilharam, quantas comentaram e isso alimenta a sua satisfação tal como se você estivesse em um cassino jogando no caça-níquel. E você joga mais uma moeda na esperança de pescar algum resultado positivo. E assim a noite passa e você não vê. E a mesma coisa acontece com as redes sociais. Os cassinos são feitos sem luz do dia para não se saber se é dia ou noite, e as redes sociais têm feeds infinitos para você não achar que aquilo acaba em algum momento. Há vários estudos sérios que demonstram como essa relação digital é um estímulo ao narcisismo e como esse ambiente também leva à depressão, uma vez que você se compara com a vida de outras pessoas que, nas redes sociais, levam somente existências bem-sucedidas, acompanhadas de pessoas bonitas e sofisticadas, comendo em um bom lugar e se divertindo, viajando para lugares incríveis. E você está lá, com contas para pagar, com um relacionamento complicado, infeliz no emprego, senão tudo isso ao mesmo tempo, pois é muito comum enfrentamos algum tipo de dificuldade. E você está sempre sujeito a suposta perfeição da vida alheia. Isso causa embaraço de ordem psicológica e distorce a realidade do mundo. É só a gente ler o jornal para ver que o mundo não é essa perfeição toda e a síntese disso é que há uma verdadeira economia da atenção, em que o bem mais escasso do mundo é o tempo. Claro que todos nós precisamos de dinheiro para viver, mas o tempo é o recurso mais escasso, porque a gente tem uma visão de tempo de futuro para passado, então ele vai se esgotando. A economia da atenção é construída em cima disso, de uma necessidade de uso do nosso tempo, de uma capitalização desse mesmo tempo para extrair dele algum tipo de vantagem, muitas vezes econômica. E nós temos que ter a dimensão de que quando estamos na internet usando o nosso tempo, estamos também usando-o a favor de outrem. Uma coisa é se estamos estudando, vendo um filme, lendo um livro, tirando algum proveito intelectual que vai nos tornar pessoas melhores. Mas se a gente passa o dia só vendo foto no Instagram, provavelmente você não se tornou uma pessoa melhor no final das 24 horas e acabou por consumir seu tempo escasso em prol de atividades para terceiros.
Vimos nos últimos vinte anos transformações enormes sociais provocadas pelo meio digital, assim como nos confrontamos com inúmeras incertezas geradas igualmente por esse mesmo meio. Como você imagina que serão os próximos vinte anos? Que sociedade encontraremos em 2040, uma vez que as desigualdades sociais, culturais e de acesso digital ainda são latentes?
Olha, esta é uma boa pergunta, muito difícil de ser respondida como tudo que diz respeito ao futuro. Mas acho que esse momento dramático que estamos vivendo, de pandemia, pode nos ajudar também a pensar no futuro. Quando imaginávamos o futuro nos anos 1980 e 1990, era uma coisa meio Os Jetsons, com carrinhos voadores. E, na verdade, a chegada do futuro se fez muito mais presente em nossas vidas por meio do celular, da digitalização da vida. O cotidiano continua sendo mais ou menos como era quarenta anos atrás, as cidades ainda são como as conhecíamos, as pessoas continuam usando o carro, o ônibus, o metrô. O dia a dia ainda se parece muito com como ele era na década de 1980, mas o aspecto futurístico tecnológico que mais fez diferença em nossas vidas foi o mundo digital e isso tende a aumentar tendo por base, inclusive, esse momento que a gente tá vivendo. Na medida em que a pandemia se alarga no tempo, fica cada vez mais evidente que nós vamos ter impactos duradouros depois que ela acabar, como, por exemplo, com o trabalho home office. Já há muitos sinais de que algumas empresas vão adotar um home office permanente. Assim, a nossa relação com o digital vai ser ainda mais cotidiana, as reuniões que eram presenciais terão que ser intermediadas por telas de computador, e a educação de adultos, sobretudo a pós-graduação, muito provavelmente também será on-line. Por isso, acho que daqui a vinte anos as nossas vidas serão mais digitais e isso vai necessitar de maior disciplina para não sermos engolidos por esse ambiente. Talvez esse excesso de celular e de computador no trabalho e na educação nos cause até mesmo um desejo de afastamento deles durante os horários de lazer, quero crer que vai haver uma compensação aí. E que a tecnologia nos liberte para que possamos voltar a desfrutar de momentos longe do celular e do computador.