Sesc SP

postado em 25/08/2020

Existe trabalho desassociado do capitalismo?

Imagem Reprodução: Pexels
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Com a crise no sistema econômico, a formatação de modelos mais humanos e igualitários permite um olhar otimista


Indo direto ao ponto, a resposta à pergunta que está no título é não. Mas também poderia ser sim. Afinal, o conceito vigente do trabalho – a princípio, aqui entendido como o assalariado – permanece tão intrínseco ao sistema capitalista, estabelecido há cerca de quatrocentos anos, que imaginá-lo fora dessa forma de organização social é tarefa que exige bastante empenho. Basta lembrar que, apesar das sociedades capitalistas terem se estabelecido de maneiras diferentes nas mais diversas regiões do planeta, seus princípios permaneceram os mesmos: garantia da propriedade privada dos meios de produção, obtenção de lucro, acúmulo de riquezas, livre concorrência entre os produtores etc. Assim, desde o fim da Idade Média, a força de trabalho tem sido a moeda de troca entre os donos dos meios de produção e aqueles que precisam de um salário para prover a própria subsistência e a de suas famílias.

Passados alguns séculos e três fases – comercial, industrial e financeira – em seu processo de evolução e consolidação, o sistema capitalista atravessa uma inegável crise estrutural. Para alguns economistas e teóricos do assunto, mudanças radicais são necessárias para contornar o colapso em curso e progredir em outra direção. E, em todos os estudos, a transformação das formas de trabalho está no cerne da questão, ainda mais ante o impacto das novas tecnologias sobre o emprego. No caso do Brasil, outro fator que atesta essa necessidade reformatória é a enorme taxa de subutilização da força de trabalho. Com 212 milhões de habitantes (sendo 170 milhões destes em idade de trabalho, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE), apenas 33 milhões têm empregos formais, 40 milhões atuam no setor informal – e 12 milhões estão desempregados. “O Brasil é caracterizado por uma imensa subutilização da sua capacidade produtiva. As novas tecnologias apenas agravam um problema já generalizado. Esperar que o ‘os mercados’ resolvam o problema não faz sentido. O Estado tem um papel chave a desempenhar. Cidade por cidade temos uma imensidão de coisas a fazer, milhões de pessoas paradas, e não estamos tomando as medidas de organização por estarmos esperando ‘o mercado’ oferecer emprego”, enfatiza Ladislau Dowbor, renomado economista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor de várias agências da ONU.

Dowbor, que pelas Edições Sesc São Paulo lançou o livro O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais, diz que estamos na era da economia imaterial. Nela, o trabalho se desenvolve a partir de novas dinâmicas, boa parte delas já em ação, mas cujos modos de remuneração também necessitam ser formatados. “O arquiteto hoje pode trabalhar em casa e desenhar projetos a partir de softwares sofisticados, consultar colegas internacionais sobre novos materiais. Os professores universitários realizam palestras e cursos on-line, os próprios materiais de ensino estão disponíveis on-line. Isso atinge as mais variadas profissões. A remuneração tende a se dar mais por tarefas ou projetos do que pelo número de horas dentro de uma empresa. Os trabalhos de André Gorz, em particular O imaterial, ajudam muito a entender as novas dinâmicas. Mas se coloca o problema da remuneração”, diz ele, que continua: “Quando Sabin criou a vacina contra a poliomielite, ele se recusou a patentear a descoberta, o que permitiu erradicar a doença no mundo. Os ganhos da gratuidade foram incomparavelmente maiores para a humanidade, do que o que ele teria ganho pessoalmente ao dificultar o acesso com patentes. O mesmo ocorreu com Tim Berners-Lee, que criou o WWW [World Wide Web] que todos utilizamos como sistema aberto, e com Jimmy Wales, que criou a Wikipédia. Mas são pessoas que tinham uma base de renda para poder desenvolver suas atividades. Temos de construir novas formas de remuneração que permitam uma sobrevivência digna e confortável frente à erosão da relação salarial tradicional, e liberar mais potencial criativo.”

 


Reprodução: Freepik

 

A visão do economista é ampliada se observamos o conhecimento como o principal fator de produção atual. Ele explicita que a colaboração e o compartilhamento são muito mais produtivos do que a apropriação privada e a competição. A isso se dá o nome de  wikinomics, conceito de economia colaborativa. Para ele, em meio a esse livre fluxo de conhecimentos, “ninguém fica reinventando a roda, todos incorporam os conhecimentos desenvolvidos em qualquer parte do planeta”.

Mas, se estamos diante do nascimento de um novo sistema econômico, o qual difere do capitalismo de mercado, mudaremos a visão de trabalho como "obrigação" para trabalho como virtude, como bem coletivo? Ladislau Dowbor aponta uma direção: “um ponto de partida é a redução da jornada de trabalho. No plano internacional se fala em ‘trabalhar menos para trabalharem todos’. Robert Reich, que foi ministro do trabalho dos Estados Unidos, considera que a dominância do ‘emprego’ tal como conhecemos ainda hoje terá durado cento e cinquenta anos, e está com os dias contados. Keynes projetava que os seus netos – ou seja, nós hoje – trabalhariam 15 horas por semana, e seria suficiente para os sustentar confortavelmente. Um estudo recente da New Economics Foundation britânica calculou que em termos de produtividade, na Inglaterra, o ideal seria uma semana de 21 horas. Hoje a produtividade em grande parte depende mais da criatividade do que do número de horas. E liberar mais dias, por exemplo, com fim de semana expandido, amplia o tempo com a família, dinamiza atividades culturais, permite voltar a estudar, conhecer outras profissões. Tudo isso tende a dinamizar a economia, mas na sua dimensão mais útil. Talvez um pouco menos de PIB, mas seguramente mais FIB, felicidade interna bruta. O próprio conceito de trabalho está se deslocando, sendo pensado em termos de utilidade social”.


O FUTURO AGORA?

Pioneira no setor da economia criativa como estratégia de desenvolvimento e sustentabilidade e apontada como uma das três mais importantes futuristas da América Latina, Lala Deheinzelin afirma que para se pensar formas de trabalho desassociadas do capitalismo é necessário compreender que estamos em transição, rumo à concretização de um novo modelo econômico, livre da polarização capitalismo e socialismo, direita e esquerda. “Para onde a gente vai é uma coisa diferente mesmo, uma economia do bem comum. Repare o seguinte: vai haver cada vez menos empregos, o que já é um fato, e cada vez menos trabalhos remunerados. Ao mesmo tempo, há uma quantidade imensa de trabalho a ser feito, de coisas a serem cuidadas e o [historiador] Yuval Harari aponta muito no trabalho dele que haverá uma quantidade enorme de pessoas que, por não terem uma posição remunerada na sociedade, irão se sentir irrelevantes. Mas isso muda completamente se essas pessoas, se assim desejarem, puderem contribuir cuidando daquilo que precisa ser cuidado, daquilo que precisa ser feito, e caberá a nós, como sociedade, criadores de novos mundos, como desenvolvedores de sistemas, imaginar de que maneira essa dedicação pode ser retribuída para que essas pessoas consigam tocar suas próprias vidas”, salienta.

Hoje em dia, como aponta a futurista, também autora do livro Desejável mundo novo e coordenadora do movimento Crie Futuros, o trabalho doméstico equivale, dependendo do país, ao que seria de 30 a 50% do PIB, não sendo, porém, creditado. Nesse futuro, que pode ser mais breve do que imaginamos, isso tudo teria um valor, uma remuneração que não necessita ser propriamente com a moeda corrente da nação. “Caminhamos para um modelo de cogestão, pois não é mais possível dar conta dos desafios de organizações, bairros, cidades e países de forma centralizada. São questões muito complexas e só a mesma complexidade daria conta delas. Portanto, o caminho é fazer junto, a cogestão. E nisso também, mais uma vez, a gente vê a necessidade de ter formas de remunerar, isso é, de dar crédito, de retribuir com valores a quem contribui. E como pode ser feito? Imagine, por exemplo, todo o conhecimento que uma pessoa pode ter, toda a infraestrutura que para ela está disponível, tudo o que ela tem para ser compartilhado, incluindo seu tempo. Então ela investe em fazer aquilo que precisa ser feito nessa nova modalidade de trabalho contributivo, regenerativo, e pode ser retribuída com outras competências, infraestruturas, matérias-primas, serviços e produtos.”

 


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Assim como Ladislau Dowbor, a futurista igualmente aponta uma direção para que se possa mudar a visão que boa parcela da sociedade tem sobre o trabalho, sobre servir somente ao lucro de alguém. Para isso, ela começa por destacar o estudo do antropólogo e anarquista inglês David Graeber, em que ele lista uma gama enorme de trabalhos “inúteis” como muito bem remunerados, enquanto outros de enorme utilidade recebem pior remuneração. Basta ver que um professor, não somente no Brasil como em outros países também, recebe uma renda não equiparada à importância de seu ofício. Para o estudioso, assim como a passagem do século XIX para o XX foi da revolta das classes trabalhadoras, que precisavam ser reconhecidas, este século atual é o da revolta das classes cuidadoras em busca de reconhecimento.

“Claro que uma das coisas nessa transição é passar de uma economia baseada no consumo – o qual não é mais possível uma vez que o planeta, o tempo e nós somos lineares, mas a dinâmica está exponencial – e passarmos a gerar riqueza pelo cuidado. O trabalho visto como exploração tende a acabar e eu, inclusive, em minhas palestras, sempre coloco as pessoas a experimentarem não responder a pergunta “você trabalha com o quê?”, mas sim, “você cuida de quê?”. Ou seja, quando eu cuidar do meu bairro, ou contar histórias para crianças, trabalhar em creche, enfim, todo o trabalho que é para o bem comum e é de regeneração, de colaboração, e esse trabalho for reconhecido, retribuído, aí a gente vai mudar o conceito do trabalho. Mas isso depende muito também de uma narrativa e as narrativas atuais não mostram o tamanho desse cenário do cuidar, que é muito grande”, conta a futurista brasileira, que ingressou nessa área do estudo após assistir, em 1995, a uma palestra da futurista e economista norte-americana Hazel Henderson. Na ocasião, a pesquisadora apresentou um estudo de 1982, no qual ela já dizia que não fazia sentido considerar apenas o PIB para medir a riqueza produzida no mundo.

Para Lala Deheinzelin, uma das soluções para essa nova economia é por meio de uma renda mínima universal, embora essa ação possa provocar em muitos uma sensação de miséria, por receberem algo sem o reconhecimento por alguma atividade. “As pessoas precisam cuidar de alguma coisa para sentirem que vale a pena, pois quem não sente ter importância passa a se sentir um pária, ainda que exerça uma contribuição imensa, porém não remunerada de uma maneira comum. E é para isso tudo que a gente trabalha, é um dos grandes eixos da fluxonomia e desse trabalho de novas economias.”

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