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postado em 11/09/2020

Omissão e genocídio

Povo indígena isolado do curso superior do rio Humaitá. Foto: Gleilson Miranda/Governo do Acre
Povo indígena isolado do curso superior do rio Humaitá. Foto: Gleilson Miranda/Governo do Acre

      


Ameaçados pela pandemia de Covid-19, os povos indígenas sofrem também com uma estratégia simples, porém mortal, de quem deveria protegê-los: “não fazer nada”

Por Felipe Milanez*


Uma visita recente de um povo indígena isolado a uma aldeia Madija-Kulina, no Estado do Acre, provocou imenso temor. Noticiada pelo jornal O Globo, a visita na aldeia Terra Nova, no rio Envira, foi relatada pelo cacique Cazuza como um encontro pacífico, tranquilo. “Eram muitos, todos nus, havia crianças e mulheres também. Todos brabos (isolados).” A única dificuldade foi em relação à comunicação entre eles, pois os visitantes falavam uma língua pertencente à família Pano, enquanto os Madija-Kulina falam uma língua da família Arawá. Os homens usavam uma linha que amarrava o pênis e não traziam armas, o que é sinal de um encontro diplomático. Um dos indígenas dormiu na aldeia e foi embora antes do alvorecer, sem que os Madija-Kulina percebessem. E levaram muitas lembranças, como vidros para cortar os cabelos, redes, cobertores, algumas roupas e comida, como macaxeira, banana e milho. Aparentemente, tudo tranquilo, exceto o risco de que nas próximas semanas essa população venha a ser exterminada.

Até o momento, a Funai não divulgou nenhuma informação oficial sobre o “contato” — como são definidos esses acontecimentos de encontros com os povos originários em isolamento voluntário. Entre 114 referências suspeitas da existência de grupos nessas condições, refugiados em seus territórios tradicionais na floresta, 28 coletivos são confirmados pela Funai. Uma carta pública de organizações indígenas e de intelectuais, liderada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), da qual sou signatário e um dos autores, cobra do governo federal o mínimo: informações e transparência diante do perigo extraordinário de genocídio. Mas, diante de um risco tão grave, são necessárias medidas urgentes e emergenciais, como a definição e implantação imediata de um Plano de Contingência sanitário, assistência à saúde e alimentação, e apoio e recursos às equipes de campo. Em síntese, a carta cobra ação do governo para a proteção dos povos indígenas isolados, o segmento mais exposto à vulnerabilidade epidemiológica da sociedade brasileira.

Pode parecer que por viverem na floresta, sem a proximidade física do cotidiano da sociedade colonial brasileira, esses povos isolados estariam livres, detentores de autonomia. Mas, diante de uma pressão imensa sobre seus territórios para a extração de recursos naturais, seja a economia da fronteira dos garimpos clandestinos, madeireiros, pescadores e até o capital financeiro por trás das grandes corporações petroleiras, mineradoras, assim como o agronegócio da soja, tenho sustentado que a soberania desses povos, e não a autonomia, está limitada pelo terror de massacres e violência. A verdade é que tais povos enfrentam, de forma bastante explícita, uma guerra permanente de conquista.
 

Necropolítica


Contato com indios isolados no Acre, próximo à região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Foto: Funai

 

Às vezes, para matar é preciso fazer nada. A política da morte, ou também necropolítica, que distingue quem pode viver de quem deve morrer, foi agravada e expandida pela pandemia e pelo crescente autoritarismo que vivemos. Com relação aos povos indígenas, como descrito acima, essa política cada vez mais se assemelha com a histórica guerra de conquista. E se manifesta de forma ainda maior com os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário, os “povos isolados”. Nos casos dessas populações – que vivem em guerra permanente, em busca de refúgio na floresta contra a conquista e a colonização –, são ainda mais gritantes os efeitos da omissão do Estado na defesa de suas vidas e de seus territórios contra a expansão da fronteira econômica do capitalismo.

Proteger os territórios onde vivem os isolados e garantir a sua autonomia está previsto na Constituição Federal de 1988 (o artigo 231 determina que compete a União demarcar as terras indígenas, “proteger e fazer respeitar todos os seus bens”) e nas normas internas de atuação da Funai desde 1987 (entre as finalidades da Funai definida em seu estatuto está a “garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los”).

Quando liderou a criação do Departamento de Índios Isolados, em 1987, na Funai, o sertanista Sydney Possuelo relatou que havia, até então, duas formas de ação com relação aos povos indígenas isolados**. Uma delas era forçar o contato, o que ocasionaria a morte de 50% a 80% dessa população em poucos meses. A outra era justamente a não ação: “Há o caso dos índios isolados que estão em determinado lugar. Se nada for feito, anos depois eles não estarão mais lá. Virou uma fazenda, uma hidroelétrica, alguma coisa fizeram e os índios desaparecem.” Segundo ele, essa era uma “vertente de pensamento”, ou uma estratégia que foi bastante utilizada durante a ditadura civil-militar (1964-1985): “não fazer nada”. Muitos indígenas morreram. Milhares deles. Mais de trezentos indivíduos do povo Matis, no Vale do Javari, e de acordo com um levantamento inicial da Comissão Nacional da Verdade, “cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Arawetá, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé”.

Muitas dessas mortes foram decorrentes de contatos forçados, aqueles em que uma equipe da Funai se dirigia equipada com presentes e seduzia a aproximação dos indígenas, para então abandoná-los a própria sorte e retirá-los do caminho das grandes obras. Ou então de contatos nos quais nada foi feito, como o caso do massacre de Corumbiara, de 1985, documentado pelo cineasta Vincent Carelli e pelo sertanista Marcelo dos Santos (fazendeiros assassinaram integrantes dos povos Akunt’su, Kanoê e de um povo desconhecido, do “Índio do Buraco”). Foram simplesmente deixados para morrer, seja por gripe ou por bala.

 


Documentário Corumbiara, 1985

 

Tal como na ditadura, a história está se repetindo e de forma trágica. “Não fazer nada” é uma das principais vertentes de pensamento hoje, junto com deixar morrer e “deixar fazer o contato”, isto é, deixar com que povos vizinhos tenham a responsabilidade de executar a difícil diplomacia do contato, arcada pela violência do colonialismo, ou então que garimpeiros, caçadores, pescadores, madeireiros e grileiros façam “o trabalho”. Seja nesse caso do contato no Acre, ou então em outras situações de isolamento que estão em iminente risco de genocídio, como os Moxihatëtëa, cercados por garimpeiros que invadiram a Terra Indígena Yanomami, ou os Awa-Guajá na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, e os 16 povos isolados que vivem no Vale do Javari, enfrentando garimpeiros, traficantes e pescadores ilegais.

 

Descaso

A dimensão da omissão é sempre difícil de ser auferida, pois temos que imaginar não o que poderia ser feito, mas sim o que deixou de ser feito. É preciso um exercício de imaginar a possibilidade de ação, que sempre pode ser maquiada, sobretudo quando a omissão se revestir de uma estratégia de conquista territorial. Essa talvez uma das principais características do Estado brasileiro: fingir-se omisso e fraco quando convém, e brutal e presente para defender certos interesses — como o patrimonialismo em defesa dos interesses privados das elites. Com relação aos povos indígenas, historicamente, sempre o Estado se fez forte na violência, e fraco na defesa, nas garantias de direitos, nas assistências, no respeito.

Esse povo no Acre vive entre as terras indígenas Kaxinawá do Rio Humaitá, Kulina do Rio Envira, Kampa e Isolados do Rio Envira e Alto Tarauacá, e já foram vistos no rio Muru, fora das terras demarcadas, assim como também no Peru, cruzando livremente a fronteira política entre os países. Seus vizinhos “contatados”, isto é, que protagonizam diretamente com o Estado brasileiro a luta por seus direitos, como os Huni Kuin, os Ashaninka e os Madija-Kulina, têm desenvolvido estratégias, desde os anos 1990, de proteger esses povos diante de invasões de não indígenas.

Desde que a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil, a situação dos povos isolados tem sido objeto de preocupação extrema do movimento indígena e de aliados não indígenas. É possível que os efeitos do novo coronavírus não sejam tão devastadores quanto a gripe e o sarampo, já que muitos casos são assintomáticos. Algumas situações, como no Vale do Javari e entre os Yanomami, os povos infectados tiveram uma baixa taxa de mortalidade — enquanto em outros, como os Kokama, os Xavantes e os Terena, a taxa tem sido violentamente alta. Mas é certo que uma simples gripe é brutal, assim como qualquer outra doença. É, portanto, uma situação de extrema vulnerabilidade que se agrava muito no atual momento.

Por outro lado, desde o início do ano as intervenções do governo brasileiro na área de proteção aos índios isolados, tanto na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), da Funai, assim como áreas específicas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), têm sido devastadoras. Se já havia corte de orçamentos, a nomeação de um missionário evangélico que integrou a missão Novas Tribos do Brasil, especializada na conversão forçada de povos indígenas em todo o mundo, foi duramente criticada pelo movimento indígena. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), inclusive, ingressou com uma ação judicial para impedir a ação de missionários no interior do território indígena. Assinada pelo advogado Eliésio da Silva Vargas, do povo Marubo, a ação foi vitoriosa na justiça federal.

 


Joênia Wapichana em sessão no parlamento. Foto: Divulgação - Câmara dos Deputados

 

No parlamento, os povos indígenas, representados pela deputada federal por Roraima, Joênia Wapichana, apresentaram em 27 de março um projeto de lei com medidas emergenciais para proteger os territórios indígenas do avanço do novo coronavírus. Entre os casos específicos estavam descritas diversas ações para a proteção dos isolados, como a implementação de barreiras sanitárias. O Projeto de Lei 1.142 foi aprovado pelo congresso em 16 de junho, e apenas sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em 8 de julho, na última hora do último dia. E ainda assim, com vinte vetos. No congresso, além de tentar barrar a medida legislativa, o que o governo fez foi inserir um artigo que autoriza a presença de missionários religiosos em áreas onde vivem os povos isolados, um retrocesso que remete ao período anterior à criação do Serviço de Proteção aos Índios, de 1910. Em 19 de agosto, 16 vetos foram derrubados pelo congresso, ao passo que, nesse mesmo dia, foram registrados setecentos óbitos de pessoas indígenas.

Em paralelo a essa ação legislativa, o movimento indígena ingressou com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 709) no Supremo Tribunal Federal, também pedindo medidas emergenciais de contenção dos efeitos da pandemia entre os povos indígenas. Também fez pedidos específicos de proteção aos isolados. No mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro impunha vinte vetos ao PL 1.142, os povos indígenas conseguiram uma decisão liminar, concedia pelo ministro Luís Roberto Barroso, determinando que o governo apresentasse um plano de ação com medidas específicas, como a desintrusão de terras indígenas e a instalação das barreiras sanitárias para proteção dos povos isolados, assim como a  criação de uma sala de situação para o governo discutir ações de proteção diretamente com os povos indígenas. Na primeira reunião, os povos indígenas acusaram uma aberta hostilização por parte dos integrantes do governo federal. Quase um mês após a decisão liminar, o STF referendou a liminar do ministro Barroso, em 5 de agosto.

Diante da deliberada omissão do poder executivo, os povos indígenas conseguiram mobilizar tanto o Legislativo, quanto o Judiciário, para forçar o governo federal a agir. Indo na contramão de medidas assertivas, a Funai abriu um processo interno para contratar um curso de pós-graduação em antropologia, ao custo total de R$ 236 mil, o qual está sendo investigado pelo Ministério Público Federal do Pará. A maior parte desse valor será destinada ao coordenador da CGIIRC, Ricardo Lopes Dias, que num ato irresponsável tentou entrar na terra indígena do Vale do Javari sem respeitar a quarentena de segurança para evitar contaminações – sua presença foi questionada pela Univaja e pelo MPF. Diferentes medidas da Funai, como a Instrução Normativa 09, de 16 abril de 2020, facilita a invasão das terras indígenas e a grilagem dos recursos naturais. A divulgação, pelo STF, da reunião ministerial de 22 de abril transpareceu que as estratégias de omissão parecem estar sendo mobilizadas como uma “oportunidade”, diante da tragédia, “para passar a boiada”, como explicou, sem metáforas, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em falas que viralizaram nas redes sociais.

Não se sabe o que aconteceu com aqueles indivíduos, homens, mulheres, crianças, que visitaram a aldeia Terra Nova, em agosto. Pode ser que tenham voltado para suas aldeias felizes com os presentes que ganharam e a experiência diplomática que tiveram com os Madija-Kulina. Mas pode ser que tenham contraído algum vírus ou algum micróbio mortal. Nesse caso, podem simplesmente desaparecer, como tantos outros povos indígenas que estão sendo deixados para morrer.

 

*Felipe Milanez é cientista social, professor de humanidades do Instituto de Humanidades Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal da Bahia, é coordenador do grupo Ecologias Políticas Desde El Sur/Abya Yala, do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Colunista da revista CartaCapital, ele é autor do livro **Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil (Edições Sesc São Paulo)



Veja também:

:: Dia do Índio? | Que este 19 de abril sirva de reflexão pra questão indígena no Brasil

:: Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil
 

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