Sesc SP

postado em 29/09/2020

Para lembrar e contar

Pedestre na Piazza San Carlo, em Turim, durante quarentena na Itália. Foto: Tomaskju/PxHere
Pedestre na Piazza San Carlo, em Turim, durante quarentena na Itália. Foto: Tomaskju/PxHere

      


Preservar o acesso às memórias daquilo que as populações e organizações viveram durante a pandemia de Covid-19 é dever de todos

 

Assim como qualquer pessoa, não há empresas ou entidades que tenham passado imunes pela pandemia de Covid-19. De inúmeras formas e em distintas proporções, todos sentiram a necessidade de se posicionar de modo diferente ao que era habitual e, especificamente na esfera privada e organizacional, encontrar, iniciar ou fortalecer a presença digital para atender seu público. Junto a essas novas práticas, há um desafio que se torna mais urgente: como serão trabalhadas a organização, o armazenamento e o acesso a estas memórias? Quem responde é a historiadora Silvana Goulart que, em coautoria com Ana Maria Camargo, lançou o livro Centros de memória: uma proposta de definição (Edições Sesc São Paulo, 2005).

Para Goulart,  ainda que se leve muito tempo até uma avaliação assertiva de tudo o que foi afetado pelo coronavírus, já é visível um deslocamento temporal quanto à memória. “Parece-me interessante esse deslocamento da dupla mais óbvia ‘passado-memória’, que adveio da certeza de uma situação extraordinária, a ser lembrada muitas vezes no futuro, por nós e nossos contemporâneos, como ‘o tempo da pandemia’. As complexas ações requeridas para cuidar dos acervos históricos – pessoais, familiares e institucionais – e da memória de temas e processos permanecem as mesmas e requerem, como sempre, planejamento, métodos, investimento e persistência. Mas acredito em uma nova sensibilidade trazida por essa experiência fundamental, que irá funcionar como motivação, além de afrontar a ideia de que a história é o que ocorreu em um passado remoto”, atesta.

Seja na esfera institucional ou particular, preservar corretamente o que o mundo está vivendo torna-se, igualmente, um compromisso com cada pessoa que experiencia os dilemas dessa contemporaneidade e com as futuras gerações, as quais, a partir de tais dados – se bem coletados, armazenados e organizados –, terão facilidade de propor outra análise a esse mesmo período. Segundo a historiadora, a memória é uma espécie de antídoto frente aos tempos líquidos que a sociedade presencia. Portanto, guardá-la e preservá-la é uma resposta à impermanência, tão comum no dia a dia de ações simultâneas vistas e vividas, sejam concretas ou virtuais. “A pandemia provocou reflexões sobre a vida, os laços afetivos, os valores, a necessidade de cuidar de si e dos outros. Passamos em revista a nossa história, as relações, o papel da família, dos amigos, da comunidade. Esse evento é um ponto de inflexão e a memória tem sido uma âncora para mantermos o equilíbrio pessoal e institucional. No caso das organizações, ela faz a ponte entre as maneiras de atuar de antes, algumas delas arriscadas a desaparecer, e a construção de novas alternativas. E o mais importante, a memória leva à preservação das fontes históricas que permitem o conhecimento e a interpretação do passado e esse é um compromisso inalienável com as futuras gerações.”

 

Blecaute


A preservação das memórias é um compromisso inalienável com as futuras gerações. Foto: PxHere

 

Cuidar do armazenamento das inúmeras ações de cada dia, especialmente aquelas que geram interesse social e valor permanente, não é tarefa simples, resultado somente de uma boa organização. O investimento contínuo em treinamento de equipes – no caso de organizações, por exemplo – e atualizações tecnológicas são fundamentais. Sem isso, o patrimônio memorial está fadado a desaparecer e, junto com ele, a ampla compreensão de como atua a sociedade de cada época. Não bastasse o coronavírus, cientistas anunciaram que houve em 2020 um aumento das tempestades solares, as quais, dependendo da intensidade que se apresentem, podem afetar redes elétricas, sistemas de comunicação e satélites, incluindo tudo o que armazenamos nas nuvens, por exemplo. Assim, como lidar com esse risco iminente de perda de dados?

“Mais corriqueiras que as explosões solares que nos obrigariam a mudar completamente nosso modo de vida, plugado na eletricidade e dependente da tecnologia, tem sido a perda de dados silenciosa e cotidiana”, conta Silvana Goulart, que atua também na Associação Brasileira de Memória Empresarial. “Mesmo no ambiente institucional é inacreditável como ocorrem acidentes por falta de investimento, de método e de renovação e manutenção dos equipamentos. Uma visão pessimista aponta para o fato de que nos acostumamos a perder dados, o que impede que sejamos mais proativos em traçar ações efetivas para preservar a integridade de arquivos pessoais e profissionais. Uma visão mais otimista aposta na tecnologia que criará maneiras de preservá-los – certamente a um custo alto”, complementa.

Mas se a pandemia continua a somar em sua conta o irrefutável número de óbitos, as organizações que já preservavam seus acervos e se voltavam para o conhecimento de sua história ao menos continuam a ampliar ações neste sentido, uma vez que, segundo a historiadora, as áreas de responsabilidade social e sustentabilidade “ganharam protagonismo pela cultura de empatia desenvolvida com as comunidades em tempos de pandemia”. Assim, cabe a cada um fazer sua parte para que seja possível lembrar e contar o que se viveu em vez de somente rever fragmentos dessa memória.

 

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