Dos escombros de Pagu: um recorte biográfico de Patrícia Galvão, de Tereza Freire, resgata o itinerário da mulher apaixonada e coerente que não teve medo de viver de acordo com seus ideais.
A história do Brasil está repleta de mulheres cujas trajetórias pessoais foram vividas com tal intensidade que elas são capazes de representar a própria condição feminina, independentemente das características peculiares do tempo e do meio social em que viveram. Dentre as brasileiras que – em pleno século da emancipação das mulheres, conquistada a duras penas – atuaram na vida pública com ousadia e determinação, destaca-se, sem sombra de dúvida, o nome de Patrícia Galvão, ou simplesmente Pagu, a jornalista, escritora e ativista política duplamente pioneira. Autora do primeiro romance proletário brasileiro, Parque industrial (lançado em 1933), e primeira mulher a ser presa por motivos políticos no Brasil.
Nascida em São João da Boa Vista, em 9 de junho de 1910, Pagu mudou-se para a capital do Estado em 1912, morando nos bairros da Liberdade, Brás, Aclimação e Bela Vista. Aos 15 anos, começa a colaborar com o Brás Jornal, sob o pseudônimo de Patsy. Apresentada em 1928 ao casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, ela passa a frequentar os salões modernistas, integrando o movimento antropofágico, quando ganha, então, do poeta Raul Bopp o apelido que a acompanhará pelo resto da vida, consagrado no poema “O coco de Pagu”. Em 1930, casa-se com Oswald, com quem tem seu primeiro filho. Junto ao poeta, inicia-se na vida política, tornando-se militante do Partido Comunista. Em 1930, participa da manifestação que destrói o Presídio do Cambuci em protesto contra o governo provisório de Getúlio Vargas. No ano seguinte, comanda uma greve no Porto de Santos e é presa pela primeira vez. Em 1933, publica o romance Parque industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo. Nesse mesmo ano, empreende uma viagem pelo mundo como correspondente do Correio da Manhã e do Diário de Notícias. Visita os Estados Unidos, o Japão e a China, entrevista Sigmund Freud e assiste à coroação de Pu-Yi, o último imperador chinês. Presa na França por sua militância comunista, é repatriada para o Brasil em 1935. Separa-se definitivamente de Oswald e retoma a atividade jornalística, mas é detida pela ditadura Vargas, permanecendo cinco anos na prisão. Desliga-se do PCB em 1940 e se casa em 1945 com Geraldo Ferraz, jornalista d’ A Tribuna de Santos, cidade na qual passam a viver. Em 1941, dá à luz seu segundo filho. Na década de 1950, atua como animadora cultural, dedicando-se especialmente ao teatro amador. Morre em 12 de dezembro de 1962, vítima de um câncer no pulmão.
Contemplado na categoria biografia do Programa de Ação Cultural (PAC) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 2006, o livro Dos escombros de Pagu: um recorte biográfico de Patrícia Galvão (Edições Sesc São Paulo/Editora Senac São Paulo), de Tereza Freire, retoma a vida pessoal e a atuação pública desta personagem emblemática da história recente do país. Tratada como uma espécie de musa transgressora nos círculos intelectuais mais restritos, dos quais fazem parte Augusto de Campos e Oswald de Andrade Filho, Pagu é ainda uma ilustre desconhecida para o grande público, merecendo ter sua vida novamente contada em livro. (A bela biografia que lhe dedicou o poeta concretista Augusto de Campos encontra-se atualmente fora de catálogo).
O primeiro capítulo do livro – “Aos olhos de Pagu” – procura mostrar ao leitor o mundo pela própria ótica da protagonista. Além dos textos publicados no jornal O homem do povo e das informações de caráter biográfico-crítico extraídas do romance Parque industrial, servem de fonte para a autora as cartas e os poemas escritos por Pagu e os desenhos concebidos por ela. Inicialmente, Tereza Freire recupera as origens dos Rehder, família de imigrantes alemães a que pertencia a mãe de Pagu, para, em seguida, traçar, meticulosa e diligentemente, a trajetória da jovem e promissora escritora, cuja inteligência e beleza tanto encantaram Raul Bopp e o casal modernista Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. O capítulo se encerra com a conversão da jovem ao comunismo pelas mãos do estivador Herculano e sua combativa militância – que lhe rendeu sucessivas decepções com o Partido.
O segundo capítulo – “Os voos de Pagu” – trata das viagens internacionais que ela realizou em 1933 (com apenas 23 anos), logo após as divergências com o Partido e a publicação de Parque industrial – que a deixou muito visada pela polícia política. As fontes utilizadas aqui foram os diversos bilhetes, cartas e postais que Pagu enviou à família e aos amigos. O tom é de felicidade, realização e gratidão pela oportunidade que lhe é dada. Ficamos sabendo que Pagu viajava à custa de Oswald de Andrade, apesar de eles não estarem mais juntos. Os bilhetes e cartas que ela escreve para o poeta apontam grande estima e amizade entre os dois.
O terceiro e último capítulo – “As gaiolas de Pagu” – é o mais curto, acompanhando, segundo a autora, a curta sobrevivência de Pagu após ter passado cinco anos na prisão. Embora tenha morrido somente em 1962, a mulher pública, de acordo com a feliz hipótese construída por Tereza Freire, “deixou de existir em 1940, em decorrência de torturas físicas e psicológicas, e do fim de um sonho ao qual entregou sua vida durante dez anos”.
Historiadora, roteirista e apresentadora de TV, Tereza Freire não se propõe a conceber nestes Escombros de Pagu... uma daquelas biografias totalizantes, em que se acompanha a vida íntima da personagem por meio de cada um dos extensos detalhes apurados, dos muitos depoimentos colhidos, das infinitas fontes consultadas. Assumidamente apresentado como um “recorte biográfico”, a obra investe em outro caminho metodológico – o da concisão criteriosa – como se dos destroços cuidadosamente examinados pela autora, pudesse surgir uma Pagu fragmentada sem soar superficial, plural sem parecer evanescente, caleidoscópica sem afigurar-se incompleta.
Há cerca de uma década, certa “Pagu indignada no palanque” surgia numa canção assinada por Rita Lee e Zelia Duncan para defender o direito das mulheres, às portas do século XXI, de continuarem a ser arrojadas e atrevidas. Cabe agora ao público leitor a prazerosa tarefa de descobrir a trajetória da Pagu original, que, embora já tenha se passado um século desde seu nascimento, continua sendo uma mulher muito à frente dos tempos que ainda virão.