Textos, fotografias e xilogravuras flagram o poeta Patativa do Assaré em toda sua dignidade
Sertão é isto: o senhor empurra para trás,
mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados.
Sertão é quando menos se espera; digo.
(Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas).
O extenso manancial da cultura letrada voltada ao sertão que ultrapassa o registro do pitoresco e atinge o estatuto daquela universalidade desejada pelo romancista russo Liev Tolstoi (“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”) ofereceu ao Brasil e ao mundo os talentos de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto. E ligado a essa densa tradição de investigação do sertão como território mítico-poético no qual se cruzam a configuração da terra, as questões do homem que nela habita e a luta que este empreende para sobreviver diariamente, figura o nome de Antônio Gonçalves da Silva ou, como se tornou conhecido, Patativa do Assaré. Poeta que maneja como ninguém a língua portuguesa popular, “inculta e bela”, ele é um grande tradutor da cultura sertaneja.
Em Patativa do Assaré: o sertão dentro de mim (uma coedição entre as Edições Sesc São Paulo e a Editora Tempo d’Imagem), o pesquisador Gilmar de Carvalho, o fotógrafo Tiago Santana e o xilogravador João Pedro recontam a vida deste “poeta das estradas” que é uma das figuras mais fascinantes dentre as muitas personalidades nascidas no Ceará. Com abordagem mais poética do que propriamente cronológica, o livro alia textos e imagens que não devotam ao perfilado o louro dos elogios fáceis, procurando, antes, captar o menestrel em sua essência genuína.
Antônio Gonçalves da Silva nasceu na Serra de Santana, Assaré, Ceará, em cinco de março de 1909. Filho de pequenos proprietários rurais, ficou cego de um olho aos quatro anos. Teve poucos meses de escola formal, mas viveu sempre entre livros. Aos 16 anos, vendeu uma ovelha para comprar uma viola e passou a distrair os serranos com poemas e repentes. Aos 19 anos, viajou para o Pará, onde ganhou do jornalista e folclorista cearense José Carvalho de Brito, lá radicado, o epíteto de Patativa, ave conhecida por seu canto mavioso. Depois, acrescentaria o topônimo Assaré à composição de seu nome artístico. Casou-se, em 1936, com Belarminda Paes Cidrão, com quem teve nove filhos.
Foi violeiro e, quando deixou de cantar, passou a compor seus poemas na roça, registrando-os depois no papel. Publicou os livros Inspiração nordestina (1956), Novos poemas comentados (1970), Ispinho e Fulô (1978), Balceiro (1991), Aqui tem coisa (1994) e Balceiro 2 (2001). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Ceará, em 1999. Deixou gravados os discos Poemas e canções (1979), A terra é naturá (1981), Patativa do Assaré (1985), Canto nordestino (1989) e 85 anos de poesia (1994). O álbum duplo Caixa do Patativa foi lançado em 2003.
Mesmo tendo canções interpretadas por astros como Luiz Gonzaga ("Triste partida", 1964) e Fagner ("Vaca Estrela" e "Boi Fubá", 1980) e por um grande número de intérpretes como Daúde, Simone Guimarães, Cláudio Nucci, Sérgio Reis e Pena Branca e Xavantinho, entre outros, Patativa do Assaré não goza ainda da notoriedade que lhe cabe por direito. Por esta razão, um livro como esse vem cumprir uma importante missão, a fim de revelar às novas gerações o talento e a grandiosidade de um poeta popular que bebe na mesma fonte de Guimarães Rosa, por exemplo.
O esforço dos autores para desvendar o sertão dentro e fora de Patativa do Assaré é notável. Gilmar de Carvalho foi professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará até 2010, quando se aposentou. Biógrafo e estudioso de Patativa, é autor de mais de cinquenta livros que tratam da relação da comunicação com a tradição e a cultura. Tiago Santana atua desde 1989 como fotógrafo profissional, tendo fundado a Editora Tempo d’Imagem, especializada em livros de fotografia. É autor dos ensaios fotográficos Benditos e O chão de Graciliano. Já João Pedro é hoje um dos nomes mais representativos da gravura de extração popular, expondo seus trabalhos, individual ou coletivamente, em vários espaços do Brasil.
Uma das grandes qualidades de Patativa do Assaré: o sertão dentro de mim é sua inventiva divisão interna. O livro é apresentado sob a forma de um abecedário. O ABC – longo poema temático cujas estrofes se iniciam com as letras do alfabeto – é uma modalidade de cantoria que migrou para o universo do cordel. O que seria um recurso mnemônico tornou-se uma tradição no universo da poesia popular, utilizado por grandes nomes desta “poesia da voz”, como o próprio Patativa do Assaré o fez, ao compor um ABC do Nordeste flagelado.
De “Avezinha cinzenta” a “Zuada. Festa para Patativa”, o leitor entra em contato com textos, fotografias e xilogravuras dispostos de modo a tecer uma fina trama cujo objetivo é apresentar-lhe um personagem complexo. Paralelamente ao registro de momentos pessoais e domésticos (“Quando chegava muita gente, alguns ficavam na sala de visitas. Patativa fazia questão de se sentar no final do corredor, na contraluz, onde foi fotografado tantas vezes. Os quartos se sucediam, e o corredor ficava num canto. Um dos quartos, o do poeta, escondia seu matulão das coisas que só ele podia mexer: o que ele considerava valioso.”), o livro recupera histórias importantes da participação do trovador na cena política brasileira. Patativa foi ameaçado de prisão em 1967, durante a ditadura militar, e subiu nos palanques da luta pela anistia, em 1979, e da campanha pelas Diretas Já, em 1984. O engajamento do poeta nas causas combativas o fez compor os versos de Brasil de cima e Brasil de baixo, onde se lê: “Inquanto o Brasil de cima/Fala de transformação,/Indústria, matéria prima,/Descobertas e invenção,/No Brasil debaixo isiste/O drama penoso e triste/Da negra necissidade;/É uma cousa sem jeito/E o povo não tem dereito/Nem de dizê a verdade.”
Essas e tantas outras passagens envolventes ligadas à vida de um homem simples do povo que viveu 93 anos de aguda existência integram este livro-monumento, erguido em memória de uma ave rara. Quando morreu, em 8 de julho de 2001, Patativa do Assaré deixou como seu maior legado um projeto de utopia. Não aquela espécie de escapismo dirigido a um futuro que, se sabe, nunca chegará. O que ele sempre almejou foi a “importância da participação, a ruptura com o imobilismo e a instauração de uma nova ordem”. Valores que as páginas de O sertão dentro de mim primam por manter como nossos contemporâneos.
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:: Trecho do livro