Em entrevista, a advogada Cris Olivieri, especialista em direito cultural, faz análise crítica das alterações na Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet
Por Gustavo Ranieri*
As alterações na Lei de Incentivo à Cultura, apelidada como Lei Rouanet, e publicadas na última quarta-feira, dia 24 de abril, no Diário Oficial como Instrução Normativa, ainda soam alarmantes para boa parte dos produtores culturais e artistas de modo geral, ainda mais para aqueles das áreas de cênicas e música. Dentro das novas normas estabelecidas, a mudança mais drástica refere-se à redução de limites de incentivo a projetos culturais por meio de renúncia fiscal. O teto de R$ 60 milhões por projeto financiado passa a ser agora de R$ 1 milhão, exceto para museus, festivais, atividades de entidades sem fins lucrativos, projetos de conservação e restauração de imóveis, entre outros, para os quais o limite será de R$ 6 milhões.
Sobre tais mudanças e como elas afetam os produtores culturais, conversamos com a advogada Cris Olivieri, especialista em direito cultural e organizadora, junto com o músico Edson Natale, dos livros Direito, arte e liberdade (primeiro título da coleção Gestão da Cultura e do Entretenimento) e do Guia brasileiro de produção cultural.
Desde a sua implementação, a Lei de Incentivo à Cultura passou por modificações variadas e foi alvo de muitas críticas. Em que medida a atual proposta de alteração contempla reivindicações do setor ou da sociedade em geral?
O público que não trabalha no segmento, que é só usuário, ficou satisfeito com os limites que foram colocados. Para o profissional, existem travas impostas e que serão repensadas, especialmente para alguns segmentos, áreas específicas, como as artes cênicas. Com limite de R$ 1 milhão, muitos dos espetáculos não poderão ser realizados, pois não haverá como manter uma temporada de alguns meses, com gastos em atores, técnicos, operação... As cênicas deveriam estar no teto dos R$ 6 milhões e não do R$ 1 milhão. E se formos falar de coisas boas, as novas alterações simplificaram o processo de prestação de contas com uso de sistema, e melhoraram o fluxo de apresentação e análise do mesmo. Isso é importante.
Muitos dos leigos que criticam a Lei de Incentivo à Cultura, justamente por não a conhecerem, acreditam que é o governo quem financia espetáculos e eventos culturais, o que não é a verdade. Outros, um pouco mais esclarecidos, dizem que a renúncia fiscal permitida por meio dessa lei é um dinheiro que deveria ir para os cofres públicos. O que responder a essas pessoas?
Toda renúncia fiscal pressupõe a não entrada do imposto no cofre público. A cultura corresponde a 0,5% da renúncia, já a indústria corresponde a 7%. E é óbvio que a renúncia existe porque o Estado acredita que o particular vai fazer mais, vai fazer melhor e, por isso, o governo vai empurrar o particular a uma direção que ele acha importante para a sociedade. E precisa haver o entendimento que a cada real que não volta para o governo como imposto com a Lei Rouanet, ele volta multiplicado 1,6 vezes nas atividades de impacto para o país. Foi isso que apurou uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas. Por outro lado, R$ 60 milhões parece muito dinheiro, mas se você pensa na reforma do Museu do Ipiranga, não é. Os musicais, por exemplo, por serem de grande porte, uma indústria grande, custam muito dinheiro e impactam na economia do país de modo muito forte. A Cultura é 2,6% do PIB nacional e cresce 4,5% todos os anos, mesmo com as crises econômicas. É um segmento econômico importante para o país. Por isso, a renúncia fiscal tem de ser vista como investimento do desenvolvimento artístico, cultural e econômico, não como perda de imposto.
Cris Olivieri. Foto: Alexandre Nunis | Sesc
Aliás, como você observa o funcionamento e o impacto atual na cultura das leis de incentivo de modo geral, tanto as de esfera municipal, estadual e federal?
Acho que, inegavelmente, as leis de incentivo fiscal à cultura promovem o desenvolvimento social, educacional, cultural e econômico das cidades e do país. É um investimento em uma área que tem capacidade de produção muito grande. Há um impacto bastante relevante da cultura em si na inclusão do cidadão, na transcendência do cidadão, na formação da identidade nacional, do autorreconhecimento. Além disso, é uma atividade com profissionais bastante qualificados e que são bem remunerados. Além disso, a cultura atua positivamente na economia sem qualquer impacto ao meio-ambiente, é a economia do futuro. Os outros países têm investido largamente nas atividades de economia criativa, artísticas, culturais. Isso é um ativo, o Brasil é um país muito criativo e ele faz muito melhor investindo em atividades culturais do que em atividades industriais. Os incentivos fiscais vão muito bem, mas a gente precisa que outros tipos de investimento, como os fundos públicos, também funcionem.
As alterações na lei também suscitaram críticas ao funcionamento atual do Fundo Nacional de Cultura (FNC), formado por verbas do Tesouro Nacional e de loterias, e que não estariam sendo repassadas da melhor maneira. Você pode opinar sobre isso?
O que acontece é que esse fundo é contingenciado. Ele é formado por vários recursos, um deles é 3% do arrecadado com os jogos lotéricos, valor que chega a R$ 450 milhões por ano, mas não repassado da forma desejada justamente por ser contingenciado. O fundo deveria servir para incentivar os artistas novos, os processos de formação deles e ser usado em áreas do país com menos recursos. Seria a porta de entrada para um artista pequeno do interior, para um produtor cultural, por exemplo, que vai aprender, se capacitar com o fundo até dominar as leis de incentivo à cultura.
Um dos pontos levantados por produtores culturais a partir do novo limite refere-se à possibilidade de redução drástica de postos de trabalho, causando um desemprego em massa na área cultural. Você acredita que o governo pode rever esses limites?
Se eles ouvirem o mercado, se entenderem o segmento, será mais fácil perceber que as artes cênicas deveriam estar no limite de R$ 6 milhões. R$ 1 milhão é muito pouco para fazer um espetáculo de qualidade, e nem estou falando de musical. Para você colocar dez pessoas no palco, mais 15 no backstage, pagar o teatro e a operação toda, não é possível apenas com esse montante. R$ 60 milhões era muito? Ok, mas R$ 1 milhão também é muito pouco. Não há motivo para desestruturar um segmento inteiro que não só emprega muita gente como tem um público muito grande.
Grandes produções são um segmento econômico importante da cadeia produtiva da cultura. Foto: divulgação
Penso que a crítica da parte da sociedade que não frequenta muito tais produções artísticas, e falo nesse caso dos musicais, ocorre porque a informação que chega até ela é a de que os ingressos custam mais de R$ 250 reais.
Em 2018, foram trinta musicais que captaram dinheiro com a Rouanet, mas desses, os que captaram R$ 10 milhões foram um ou dois; a maior parte capta R$ 3 milhões, R$ 4 milhões e compõem a renda com a bilheteria. Por outro lado, as pessoas não sabem, mas antes já havia 10% de ingressos sociais, agora são 20%. Se você imaginar, são mais 10% para o patrocinador, mais 10% dos ingressos para a divulgação, mais agora 10% por R$ 50 reais vale-cultura. Sobrou 50% da bilheteria e desse montante você tem de pagar o teatro, que cobra de 25 a 30% da bilheteria, e ainda tem os direitos autorais. Sobra muito pouco para se vender. E, na verdade, não é R$ 250, é R$ 125, pois neste país, 99% das pessoas pagam meia, não é? (risos).
No dia 24 de abril, durante audiência da Comissão de Cultura da Câmara, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, disse que 90% dos projetos atualmente estão abaixo do R$ 1 milhão de gastos. Isso justificaria a redução dos limites. Essa declaração não soa uma desculpa sem argumentos fortes?
Acho que sim, pois, na verdade, não é disso que se trata. A lei é para todos e é a única lei de cultura. Diferente do cinema, que tem uma lei própria, e que torna tudo mais fácil, embora ainda gere discussões, pois tem cinema de arte ou o mais comercial, por exemplo. Agora, no caso da Lei de Incentivo à Cultura, coloca-se na mesma sacola as artes cênicas, as exposições, os museus, a dança. Todos têm atuação muito diversa e precisam responder a uma mesma regra. Então, não importa quantos projetos você tem para além de R$ 1 milhão, mas o impacto deles. É verdade que a maior parte dos projetos acima de R$ 1 milhão são exceções, como museus, exposições, festivais, óperas, prêmios. Mas eles ficaram de fora das alterações.
Durante essa mesma audiência, o deputado federal Marcelo Calero também criticou o aumento da cota de ingressos gratuitos, que subiu de 10% para uma faixa entre 20 e 40%. Para ele, não basta apenas dar o ingresso como política pública sem olhar outros aspectos importantes para a experiência dessa pessoa de forma geral, incluindo o transporte dela ao teatro, como se sentir confortável no ambiente. Você concorda com ele?
Concordo. As pessoas não sabem, mas a questão dos ingressos gratuitos é complicada. Todas as produções já dão os ingressos para instituições, escolas públicas, isso é comprovado. Mas é uma operação muito difícil, tanto para quem quer dar quanto para quem quer receber. Você levar uma classe de estudante para o teatro nem sempre é tão simples. Concordo com ele que outras ações governamentais são mais efetivas.
Outro aspecto importante da instrução normativa é a descentralização de projetos do eixo Rio-São Paulo, oferecendo um teto maior de gastos para proponentes da região Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por exemplo. Podemos dizer que isso é um ponto positivo?
É uma tentativa de empurrar, de tentar atender esse Brasil continental, que tem condições diversas para conseguir colocar as coisas de pé. Mas assim, certo ou errado, nesse sentido eles estão tentando usar o Estado, tentando cumprir o papel público de usar a renúncia fiscal para levar a sociedade para o lado que o governo acha que deve ser. É uma tentativa de fortalecer. Mas daí vou com o Calero. Apenas aumentar o teto não funciona, pois precisa ter formação de produtores culturais e capacitação do setor. Não se pode esquecer que a Lei Rouanet não é paras amadores, é quase uma corrida com obstáculos. São tantos detalhes que não é simples para o produtor cultural. Não é só conseguir um patrocinador. O produtor tem de estar capacitado, entender quais são as necessidades, etapas da produção.
Se não houver nova alteração no teto dos valores que podem ser captados, podemos dizer que a conclusão da nova Instrução Normativa é a obrigação, mesmo que equivocada, de os produtores culturais se reinventarem?
Com certeza, especialmente para os produtores das artes cênicas e da música. Há as exceções, que foram museus, bienais, feiras de livros, festivais, eles estão contemplados com teto maior e seguem a vida normalmente. Mas quem trabalha com artes cênicas e música vai precisar se reinventar.
*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.