Homenageado da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, o jornalista e escritor escreveu um dos livros mais determinantes para se entender o Brasil
Por Gustavo Ranieri*
Já se vão 117 anos da primeira publicação de Os sertões. Desde então, a ilustre epopeia foi reeditada em inúmeras ocasiões e permanece sendo motivo para extensos estudos. Em 2016, um belo volume da obra chegou às prateleiras, fruto da parceria entre as Edições Sesc e a Ubu Editora e celebrando, na ocasião, os 150 anos de nascimento de seu autor, Euclides da Cunha (1866-1909). Agora, três anos depois, o escritor e jornalista é o homenageado da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, o que suscita uma importante questão: o que Euclides e Os sertões têm ainda a dizer nesse século XXI?
Na opinião do historiador e escritor Marco Antonio Villa, autor de mais de vintes livros, incluindo Canudos: o campo em chamas e Canudos: o povo da terra, a contemporaneidade de Os sertões reside no fato do livro “apresentar um Brasil que o Brasil desconhece, de levar o sertão ao litoral, um sertão que era desconhecido”. Hoje, ele reforça, “temos um Brasil que ainda é desconhecido, mas não está mais no sertão e, sim, nas periferias”.
De difícil classificação, Os sertões adentra o jornalismo, a literatura e o estudo sociológico para narrar a rebelião de Canudos, liderada por Antonio Conselheiro. Em 1897, um ano após o início do conflito, Euclides foi enviado à Salvador pelo jornal O Estado de S.Paulo, onde ficou primeiramente por mais de vinte dias aguardando autorização do exército para seguir viagem. Ali começou a colher informações dos soldados feridos que chegavam à capital baiana, partindo em seguida para o acampamento das tropas imperialistas da quarta e última expedição, analisando in loco o combate, colhendo dados, impressões e transmitindo as notícias ao jornal por meio de telégrafo. Contudo, em 5 de outubro de 1897, dois dias antes da queda de Canudos, Euclides foi embora por causa de um acesso de febre. Só no ano seguinte, em 1898, começaria a escrever aquele que é visto como marco fundamental nos estudos sobre a formação brasileira.
Para Walnice Nogueira Galvão, especialista em Euclides e que fará a palestra de abertura da Flip 2019, o trabalho que o jornalista publicou há mais de um século permanece vivo e desperto por encontrar similaridades com fatos atuais do país. “Euclides, de maneira inovadora e até àquela altura única, fez um livro para demonstrar um genocídio executado pela classe dominante brasileira contra pobres. E se você olha ao seu redor no Brasil de hoje, o que se vê? Genocídio de pobres. Em São Paulo, na periferia, assassina-se os pobres, especialmente negros entre 18 e 25 anos. Outro exemplo é a militarização das favelas no Rio de Janeiro, que promove genocídio de pobres, e outro é [a tragédia de] Brumadinho. Euclides, de uma maneira precursora e visionária, demonstrou um processo que existe até hoje. Quando vamos parar de praticar genocídios contra os pobres?”, enfatiza.
Quatrocentos jagunços prisioneiros, 1897. Canudos, Bahia. Foto: Flávio de Barros
Villa, por sua vez, relativiza a ideia de um extermínio em massa. Ele atesta que, antes, “é preciso primeiro compreender o que foi Canudos, quem vivia na comunidade, quais relações estabeleceram com o entorno, inclusive comerciais, e a motivação política para o combate, muito relacionado ao início da República”.
Autor de outros livros, como Contrastes e confrontos e À margem da história, Euclides da Cunha foi cobrir a revolta de Canudos valendo-se de teses e princípios científicos envelhecidos para os nossos tempos. De espírito patriótico e republicano, ele enxergava Antonio Conselheiro e seus seguidores como uma ameaça ao desenvolvimento brasileiro, assim como se baseava em preconceituosos preceitos naturalistas para apontar a inferioridade racial do sertanejo perante a superioridade das “raças do litoral”.
“A ciência que ele utilizou está superada, mas é a que ele tinha de estudar na época para fazer a análise do Brasil. Ele não tinha como perceber, não tinha horizonte para isso, que aquela ciência era imperialista e colonialista”, conta Walnice. “Na segunda metade do século XIX as grandes potências europeias, no chamado neocolonialismo, invadem o continente africano [tanto quanto o asiático e a Oceania], dividem o mundo em branco e não branco e partem a explorar as riquezas. Cientistas, exploradores, naturalistas, botânicos faziam levantamento dos recursos naturais existentes nesses países, ao mesmo tempo que essa carga de levantamento de recursos naturais produzia as teorias para justificar a exploração dessas populações apontadas como inferiores. E era somente dessa ciência que Euclides dispunha para si. Ele trabalhava com instrumentos que eram contra ele.”
Ainda que não por completo, o contato com a miséria dos jagunços que conheceu durante o combate e a consciência do estrago provocado pela exclusão social fez sua visão sobre o homem do sertão mudar. Por isso, das quase setecentas páginas de Os sertões, a frase mais célebre talvez seja: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.
* Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.
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