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postado em 13/01/2021

Villa-Lobos Trios

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Não há como negar, passados 61 anos de sua morte, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) ainda é considerado para muitos o maior e mais importante compositor brasileiro de todos os tempos. Uma referência para o meio musical, sua obra, amplamente gravada por orquestras, conjuntos camerísticos e solistas segue pulsante dentro e fora da música de concerto. Villa escreveu cerca de 1.000 composições e sua importância reside, entre outros aspectos, no fato de ter utilizado o folclore brasileiro em suas obras, tornando-se o maior expoente do nacionalismo musical brasileiro. Foi, também, através do compositor, que a música brasileira tornou-se mundialmente conhecida.

Um trabalho tão vasto que periodicamente necessita duma luz mais dura em detalhes despercebidos de sua trajetória, como é o caso dos trios para cordas, colocados a disposição do público em gravação antológica pelo Selo a partir deste 15 de janeiro no Sesc Digital e no dia 20 de janeiro nos principais players de streaming. Encabeça o registro, o maestro, regente e diretor musical da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, Claudio Cruz, responsável por arregimentar a seleção ao lado de Ricardo Castro (piano) e Antonio Meneses (violoncelo) e Gabriel Marin (viola).

Os três trios com piano, cada um composto por quatro movimentos, foram escritos entre 1911 e 1918, época em que Villa-Lobos ainda buscava se afirmar no cenário musical brasileiro, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, e sob forte influência da estética francesa. Os Trios n. 1, n. 2 e n. 3 compõe um trabalho referencial para quem se dispuser a conhecer melhor a obra do compositor, por apresentarem estética própria, mesmo tendo sido compostos num curto intervalo de 7 anos. Além disso, o que faz do disco uma gravação única é a inclusão do único Trio de Cordas (violino, viola e violoncelo) de autoria de Villa, já em 1945, período em que o músico já era reconhecido internacionalmente e consagrado na Europa e Estados Unidos. 

Para ouvir o repertório gratuitamente siga por este link. Além disso, conheça cada detalhe dos trios e onde estão situados dentro da trajetória de Villa-Lobos no texto abaixo assinado em parceria pela jornalista Camila Fresca e a pesquisadora musical Flávia Toni.

 

Villa
O jovem Heitor Villa-Lobos em 1922 | Wikipedia (Domínio Público)

 

      


A cristalização de uma poderosa personalidade: os trios de Heitor Villa-Lobos

por Camila Fresca e Flávia Toni

 

Embora a escrita para trio de instrumentos musicais seja complexa, tendo em vista solucionar o equilíbrio e a transparência do tecido que entrelaça as três vozes, Villa-Lobos parece não ter evitado as possibilidades de enfrentar este tipo de agrupamento. Segundo seu catálogo de obras, ele escreveu sete peças com combinações diversas para três músicos. Pela ordem cronológica, e considerando primeiramente as formações que possuem instrumentos de sopro, temos uma peça para violoncelo, piano e flauta, de 1913, estreada por ele e Lucilia – sua primeira esposa – em 1915, e tendo Agenor Bens na flauta (a obra permaneceu em manuscrito e foi perdida). Um trio para oboé, clarineta e fagote foi escrito em 1921 e estreado em 1924, durante a primeira estadia do compositor em Paris. Há ainda uma Fantasia concertante, de 1953, para clarinete, fagote e piano, estreada em 1968, após a morte do autor.

Instrumentista que viveu de sua prática musical, no palco, antes do reconhecimento como compositor, Villa-Lobos tocava violoncelo, violão e piano, não se sobressaindo em nenhum deles. No entanto, pelo menos até 1930, sabemos que ele foi intérprete de seus três trios com piano em diversas ocasiões. As peças foram criadas entre 1911 e 1918, justamente o período em que, segundo Bruno Kiefer, foram compostas as obras "de alguma significação estética e/ou histórica" de Villa-Lobos antes da Semana de 1922.

Boa parte dos autores que estudaram a obra do compositor concorda que até 1922, pelo menos, a influência da estética francesa é marcante em sua produção. Em termos culturais não há como se escapar a esta chancela, haja vista, por exemplo, a expressão dilatada da presença de Darius Milhaud no Rio de Janeiro, entre 1917-18, participando de concertos e saraus de música com artistas cariocas, ouvindo e sendo ouvido por Villa-Lobos, entre outros autores e intérpretes.

O Trio n. 1 para violino, violoncelo e piano é dos mais difíceis de se estudar a trajetória, pois pertence a um momento da vida do compositor em que a documentação é lacunar. Escrito em 1911, a obra tem os quatro movimentos tradicionais: Allegro non troppo / Andante sostenuto / Scherzo vivace - Scherzo / Allegro non troppo e Rondo final. Em sua estreia, em 1915, contou com Humberto Milano, ao violino, Oswaldo Allioni, ao violoncelo e Lucilia Villa-Lobos ao piano.

Trata-se de uma obra de juventude e que, como afirma o pesquisador Eero Tarasti, não mantém (como os demais trios) relação estreita com a música da América do Sul. Ou seja, nesta obra não se localizam índices de brasilidade no ritmo ou nas melodias, sinais que comumente são buscados pelos ouvintes que almejam situar o compositor num dos movimentos nacionalistas do século XX. Segundo ele, essas peças poderiam ser consideradas de um impressionismo tardio, muito influenciadas por César Franck. O terceiro e especialmente o quarto movimento são mais elaborados e menos esquemáticos do que os dois primeiros. No Allegro non troppo e Rondo final, aliás, há nítida influência da Sonata em si menor para cello e piano de Brahms. Supondo que, como violoncelista, o próprio Villa-Lobos tocou muitas vezes essa obra, é possível afirmar que é neste trio que o jovem violoncelista se faz mais presente.

O Trio n. 1 foi tocado novamente em São Paulo, no ano de 1922, a 17 de abril, tendo Leonidas Autuori ao violino, Lucilia Guimarães ao piano e Armando Bellardi no violoncelo. Em Presença de Villa-Lobos (vol.9), Alceo Bocchino relembra um ensaio dessa obra que contou com a presença do compositor:

[...] Após os primeiros ensaios particulares, Villa-Lobos quis ouvir o seu Trio. Célio Nogueira, Iberê e eu fomos, numa noite, à sua casa. Eu estava preocupado porque existem, nesse Trio, algumas passagens pianísticas complicadas. Complicadas até se descobrir o segredo delas, o jeito de sua realização. Eu havia resolvido os problemas, mas continuava apreensivo, ao mesmo tempo me perguntando por que Villa-Lobos escrevera - principalmente certa escala ascendente em velocidade - daquela maneira?! Comentando com ele esse momento da obra, aliás de grande brilho e efeito, respondeu-me sorrindo:

"Ora, em 1911 eu não conhecia muito bem o piano!... Baseava-me, apenas, no violão."

O Trio n. 2 foi escrito em 1915 e tem igualmente quatro movimentos: Allegro moderato / Berceuse - Barcarolla (Andantino calmo) / Scherzo (Allegro vivace spiritoso) / Final (Molto allegro). Estreado em 1919, no Rio de Janeiro, e apresentado no primeiro Festival da Semana de Arte Moderna, a 13 de fevereiro de 1922, foi editado pela casa francesa Max Eschig em 1928, durante a segunda estadia do compositor em Paris.

Para Bruno Kiefer, este é igualmente um trio de inspiração francesa. "Em termos globais, a obra situa-se mais ou menos no pós-romantismo francês. Ouça-se, por exemplo, o último movimento com sua veemência típica de um subjetivismo exaltado, dinamizado por arabescos e figurações rápidas. De Villa-Lobos, assim como nós o conheceremos, encontraríamos, no máximo, alguns lampejos", afirma. Para além da influência francesa, desde os primeiros compassos já se percebe que se trata de uma obra muito mais elaborada que a anterior, com uma escrita mais desenvolvida para as cordas e ritmos mais complexos.

Escrito em 1918, o Trio n. 3 é também composto de quatro movimentos: Allegro con moto / Assai moderato / Allegretto spiritoso / Final (Allegro animato). Como no caso do segundo trio, a primeira edição se deu em Paris, pela editora Max Eschig. A peça, no entanto, já fora estreada no Brasil, a 21 de outubro de 1921, no Rio de Janeiro (Salão Nobre do Jornal do Commercio) tendo Paulina d'Ambrosio ao violino, Alfredo Gomes ao violoncelo e Lucilia Villa-Lobos ao piano. Poucos meses depois, os mesmos intérpretes tocaram-na em São Paulo, a 17 de fevereiro de 1922, no Segundo Festival da Semana de Arte Moderna.

Plateia bem mais intimista teria escutado a obra em Paris, na casa do influente Henry Prunières, editor da Revue Musicale, segundo depoimento do pianista Souza Lima:

Morando em Paris já há alguns anos […] entrosado naquele grande ambiente musical […] não tive dúvida em proporcionar ao nosso músico as primeiras ligações com os mestres do momento, tanto assim que o apresentei e fiz uma execução do seu 3º Trio juntamente com Raul Laranjeira (violino) e Mario Camerini (violoncelo) a Henry Prunières […] em sua residência, numa daquelas terças-feiras quando eram apresentados artistas e obras novas aos grandes mestres. Naquela tarde estavam presentes: Paul Dukas, Albert Roussel, Samazeuilh, Florent-Schmitt, Louis Aubert, Roger-Ducasse e muitos outros, que se surpreenderam com as pitorescas harmonias, com as combinações mais surpreendentes aliadas a uma perfeita fatura instrumental. Villa-Lobos foi muito cumprimentado e elogiado, mantendo diálogo com aquelas personalidades. Foi assim seu primeiro contato com os mestres franceses, o primeiro passo para um caminho que já se abria com vislumbres de consagração.

Trata-se sem dúvida de um passo além em relação ao Trio n.2, embora não haja um desenvolvimento da linguagem musical tão grande quanto a que se percebe do primeiro para o segundo trio. Ainda que dentro da estética romântica, é a obra mais madura das três, e igualmente a mais virtuosística, afastando-se de situações domésticas e exigindo intérpretes bem preparados.

Vinte e sete anos passados após a composição do terceiro Trio, em 1945 Villa-Lobos atende a uma encomenda da Fundação Elizabeth Sprague Coolidge, entidade voltada à promoção da música de câmara através de encomendas de obras, concertos e festivais. Seu único trio para cordas - violino, viola e violoncelo - vem à luz em contexto pessoal e profissional muito diversos. Se na década de 1910, quando escreveu os trios com piano, Villa-Lobos era um compositor que tentava se afirmar nos meios musicais do Rio de Janeiro e de São Paulo, este trio é obra do compositor que se tornara o músico mais importante do Brasil. De personalidade exuberante, politicamente muito influente e reconhecido internacionalmente, iniciava um período de consagração definitiva por meio de viagens profissionais aos EUA, que se tornariam regulares até a sua morte, em 1959.

No formato tradicional de quatro movimentos (Allegro / Andante / Scherzo (Vivace) / Allegro preciso e agitato), a obra teve sua estreia em outubro do mesmo ano em Washington, pelo Albenieri Trio.

Segundo Gerard Béhague, nesta obra Villa-Lobos "encapsula algumas de suas mais admiráveis idiossincrasias". A peça se destaca pela riqueza melódica e combinações rítmicas que, no entanto, não possuem afinidade direta com fontes populares e folclóricas. Dentre os trios com instrumentos de cordas, este é o mais virtuosístico e pode-se dizer mesmo que o mais arrojado tecnicamente. O compositor faz uso sistemático de longas passagens em harmônicos em uníssono, reunindo geralmente dois dos três instrumentos e destacando, assim, a voz do terceiro deles - como no segundo movimento, no qual violino e violoncelo emolduram a voz da viola.

Se encontram-se distantes no tempo no que diz respeito à sua criação, e ilustram claramente diferentes estágios composicionais do autor, os quatro trios de Villa-Lobos possuem características que podem ser aproximadas. A principal delas, talvez, diga respeito à arquitetura musical. Todas as peças possuem quatro movimentos (rápido-lento-scherzo-final) claramente desenhados conforme a tradição de trios, quartetos ou sonatas. Fica evidente que há, por trás das obras, um músico que estuda e observa peças do gênero e as toma como parâmetro para suas próprias obras.

Em 1946, ao comentar a contribuição harmônica de Villa-Lobos para a música brasileira, o compositor Lorenzo Fernandez afirma que Villa apresenta "soluções que, longe de serem meros acasos, como a muitos se afigura, são fruto de longas e pacientes observações". Ao traçar a trajetória do compositor até aquele momento, Fernandez acaba por fazer uma análise que se encaixa perfeitamente nas quatro obras aqui presentes:

Só quem convive com esse grande artista, exteriormente tão desigual, é capaz de compreender a sua evolução lenta e segura, pois Villa-Lobos, desde os seus trabalhos de mocidade, em que se sente uma técnica deficiente e mão incerta, embora já se notem acentos de sua força criadora, começa uma ascensão em que a técnica vai melhorando dia a dia, vai enriquecendo-se até um período em que atinge grande complexidade, para alcançar, no momento atual [1946], uma maior simplicidade de meios e, ao mesmo tempo, grande poder de síntese e de emoção, numa cristalização total de sua poderosíssima personalidade.

 


Camila Fresca, jornalista, mestre e doutora em artes/musicologia pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Flávia Toni, mestre e doutora em Artes, é Livre-Docente (2004) e Professora Titular (2009) da Universidade de São Paulo.