Sesc SP

postado em 11/06/2021

A Paisagem Zero

Cenário que estampa a capa de A Paisagem Zero | Foto: Claus Lehmann
Cenário que estampa a capa de A Paisagem Zero | Foto: Claus Lehmann

Poeta essencial brasileiro, avesso à escrita subjetiva, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) teve o rigor como condutor de sua escrita e foi responsável pelo surgimento de uma poesia original, fortemente imagética. Helô Ribeiro, no novo trabalho “A Paisagem Zero”, lançado a partir de 16 de junho pelo Selo Sesc, se debruçou sobre a obra do poeta e se viu ligada a essas imagens potentes para propor uma aliança entre música e poesia.

O projeto já era um desafio para a integrante do grupo Barbatuques, lançada em carreira solo desde seu primeiro trabalho "Espaço Invade", de 2010: transformar poemas em canções. A lista de artistas que comungaram da mesma ambição é extensa, mas ao propor esse olhar, Helô trouxe para o disco uma atmosfera predominantemente urbana e pop, criando uma fusão entre o Nordeste de João Cabral e o cenário paulistano do qual ela faz parte.

Ainda que o poeta pernambucano não seja considerado obscuro, sua obra é marcada pelo rigor estético e causa algum estranhamento a quem espera uma poesia emotiva (como não se lembrar dos sufocantes versos de "Poema Deserto": "Eu me anulo me suicido / percorro longas distâncias inalteradas / te evito te executo / a cada momento e em sua esquina"). Para dar conta deste exercício diegético, Helô recorreu aos poemas da primeira fase do autor, das edições de "Pedra do Sono" (1942) e "O Engenho" (1945) considerada a mais onírica e visual de sua obra, o que a instigou buscar distintas saídas em seu processo de composição: “A Paisagem Zero”, por exemplo, música que dá título ao álbum, foi feita de uma só vez, com acordes que ficam se repetindo de forma circular e mântrica. Em outra faixa, “A Moça e o Trem”, a forma da música se adequa ao conteúdo: ora ralentando ora acelerando, brincando com o tempo. Completam ainda o repertório “O Rio” que tem a participação dos Barbatuques e Bruno Buarque, no beatbox; “A Viagem”, ao lado de Maurício Pereira, e “Os Primos”, com Alzira E.; e as faixas “Telescópios”, “O Fim do Mundo”, “A Paul Valéry”, “Poema Deserto” e “A Mulher Sentada”.

Chegando até aqui, é possível que você encontre uma sonoridade que remete a referências como Mutantes e Secos e Molhados, dialogando com o onirismo e a psicodelia dos poemas cabralinos. A culpa está na cozinha escolhida, representada por um time versátil de colaboradores, responsáveis por vestir os versos com melodias urbanas e desprendidas do óbvio. É Helô Ribeiro quem canta em todas as faixas, além de tocar flauta transversal, mas ela conta com a companhia dos músicos Dustan Gallas (guitarras e teclados), Thomas Harres e Samuel Fraga (baterias), Cuca Ferreira, Amilcar Rodrigues e Douglas Antunes (metais) e Zé Nigro (baixo), que também assina a produção do disco e é conhecido por trabalhos com Anelis Assumpção, Apanhador Só, Russo Passapusso, Luisa Maita, Francisco El Hombre, Saulo Duarte entre outros.

O disco estará disponível nas principais plataformas digitais e Sesc Digital nesta quarta (16/6) e Helô preparou para o lançamento um videoclipe dirigido pela artista visual Jojo Hissa repleto de colagens e signos que tavam ali na cabeça do poeta. Quem assina o texto de apresentação é Luiz Tatit, cujas palavras podem ser lidas logo abaixo.

A Paisagem Zero

por Luiz Tatit

 

Helô Ribeiro encara o difícil desafio de converter poemas em letras de canção. Mais difícil ainda: transformar poemas consagrados de João Cabral de Melo Neto em letras de canções contemporâneas, criadas pela própria artista, boa parte delas embebida na dicção da balada, do rock e do pop. Em vez da homenagem reverencial, aquela que confirma a posição de destaque do autor pernambucano na galeria dos nossos maiores poetas de todos os tempos, Helô prefere trazê-lo aos ouvidos jovens que em geral navegam pelos serviços de streaming digital. O primeiro passo para isso é a gravação deste CD em parceria com o Selo Sesc com dez poemas cabralinos que, pela primeira vez, deixam os seus livros de origem para visitar o mundo cancional.

Helô deve ter declamado muitas e muitas vezes os versos escolhidos até depreender a melodia embrionária que, como tal, não estava (ou estava!) no horizonte de criação de João Cabral. Sabe-se que os cenários construídos pelo autor sempre foram mais imagéticos que musicais. Dizer os versos para si mesmo é a maneira mais eficaz de decifração do que há entre o eu lírico e as imagens do texto. É nesse vão que nasce a melodia, o modo de dizer que será fixado e eternizado pelos recursos musicais. Em “A Moça e o Trem”, por exemplo, a passagem veloz do trem contagia quem narra a cena e faz com que se acelere também o fluxo melódico. Mas ao dizer que o tempo é imenso no universo subjetivo da moça que contempla a cena (“O tempo é tanto”), imediatamente a canção se desacelera para que esse tempo possa ser devidamente “ouvido” ou “visto”, como pedem as palavras da letra.

Com esses procedimentos de vínculo estreito entre poema (agora já como letra), melodia e arranjo, Helô atinge o clímax comovente do seu trabalho em “O Rio”. No texto de Cabral, o fluxo inexorável da correnteza rumo ao mar traz clara identificação com a vida humana que, em sua continuidade, leva consigo outras vidas compartilhando o mesmo destino. Na música da compositora, a abertura das vozes já traduz a resposta de muitos ao “exigente chamar” e o refrão final (que só a melodia pode definir) transforma-se em desaguadouro, assim como o mar em relação aos rios, para a inevitável caminhada dos seres humanos. Tudo soa simples, mas ecoa com profundidade.

Já foi dito algumas vezes que João Cabral não se interessava muito por música. Mas creio que é porque não teve a chance de ouvir essa homenagem que lhe faz Helô Ribeiro.

 

Luiz Tatit é músico, lingüista e professor universitário brasileiro.