Sesc SP

postado em 21/06/2021

Forró de Rabeca

MLP capa

Exaltando os ritmos do Nordeste brasileiro, como sambas, forrós, cocos, cirandas e cavalos-marinhos, “Forro de Rabeca” traz 14 faixas entre composições inéditas de autoria de Luiz Paixão e temas de domínio público, com participações de Siba e Renata Rosa. 

 

Na derradeira semana em que nos colocamos pela primeira vez diante dos efeitos da pandemia as preocupações eram outras. Nem se a quantidade de luz daria conta para as imagens ou se o pacote de lentes para a gravação estava correto, mas sim, como reunir uma grande equipe no mesmo espaço sem colocar nosso artista principal em risco. No dia 16 de março de 2020, quando ensaiávamos um pulo até a Gargolândia, templo de gravações da música instrumental brasileira (incluíndo aí os últimos discos de Hermeto Pascoal, Itiberê Zwarg, Teco Cardoso, Bebê Kramer e Swami Jr.) para topar finalmente com a figura de "Seu Luiz" registrando seu novo disco, um cancelamento às pressas foi inevitável. 

Era natural imaginar um possível encontro com o ambiente ao qual nosso artista retratado estaria à vontade, contudo o medo do inesperado nos colocou no dilema do risco iminente. A gravação do disco ainda sim seguiu, com o time que o mestre arregimentou de sua terra natal e seus pupilos, prontos para dar um novo toque e frescor a sua musicalidade. Um final feliz, para um projeto que rasga fundo a estrada de terra e vai nos transportar para a Zona da Mata Norte pernambucana, para a urbana Recife e, porque não, atravessar o Atlântico e colocar para bailar o velho continente, ao qual nosso personagem já foi devidamente apresentado em outros carnavais.

Mestre Luiz Paixão tem 72 anos de vida e 60 dedicados à rabeca e sua carreira pode ser considerada um ponto de encontro entre passado e futuro: aprendeu com a tradição familiar e os mestres da Zona da Mata Norte de Pernambuco e, mais tarde, influenciou uma nova geração de artistas nordestinos, que (re)colocaram a rabeca na indústria fonográfica e renovaram o interesse pelo instrumento para além dos limites regionais. 

O álbum Forró de Rabeca, lançado a partir de 24 de junho pelo Selo Sesc, traz, por um pedido do próprio mestre, esse diálogo entre gerações: reúne seus antigos companheiros de cavalo-marinho da Zona da Mata Norte – festa popular que mistura música, dança e encenação – e os jovens músicos que o acompanham em suas turnês internacionais. Também participam das gravações dois de seus discípulos, os músicos, cantores e compositores Renata Rosa e Siba Veloso.

Com 14 faixas, entre instrumentais e canções, e reúne as composições preferidas do mestre rabequeiro. Na lista das autorais de Luiz Paixão estão “Samba da Santa”, “Baião Arrochado”, “Farol de Olinda” e a faixa-título “Forró de Rabeca”. Há também as escritas em parceria com os músicos que o acompanham nesta longa trajetória de festas populares, como “Forró do Cambiteiro” (com Guga Santos e Stef Pai Véio), “Menina Linda” e “Samba das Rabecas” (ambas com Mina), “Dona Maria o Coco é Redondo” (com Sidraque) e “Ciranda da Macaxeira” (com Guga Santos).

Na sequência, leia o texto que o músico e pesquisador Caçapa deixou para a apresentação do disco, além da nota do diretor artístico João Selva.

 

Forró de Rabeca (Mestre Luiz Paixão) estará disponível a partir de 24 de junho nas plataformas de streaming e no Sesc Digital

 

 

72 anos de vida, 60 de rabeca.

Nascido em 1949 no Engenho Palmeira, município de Aliança, Zona da Mata Norte de Pernambuco, Luiz Paixão completou, em 2019, 70 anos de vida e 58 de rabeca. São 58 anos de longas noites em claro, muito bem gastas puxando baianos e toadas em bancos de cavalo marinho e solando em grupos de forró. São 58 anos de olhos e ouvidos bem abertos, espiando rabequeiros, tocadores de oito baixos, sanfoneiros, violeiros, cocos de umbigada, rodas de ciranda e sambadas de maracatu nos engenhos, sítios, povoados, ruas e praças da Mata Norte. Foram também mais de 40 anos de trabalho pesado no corte de cana-de-açúcar e no roçado, iniciado ainda menino, aos 8 anos, em 1957. Em 1998 “abandonou o campo” e desde então vem empunhando sua rabeca em palcos, festivais, cursos e oficinas em um grande número de cidades brasileiras e européias, seja para apresentar sua própria obra e transmitir sua experiência, seja para acompanhar a cantora paulista Renata Rosa, aluna, amiga e admiradora de longa data.

Quando Luiz raspa o arco na rabeca e corre os dedos pelo braço do instrumento, saltam aos ouvidos a precisão, leveza e agilidade do seu toque e a elegância, força e balanço das músicas que correm soltas no seu juízo. Quem já o ouviu certamente guarda seu estilo e sonoridade na memória e é capaz de reconhecê-lo imediatamente, numa audição desavisada.

Saudado como instrumentista virtuoso, Luiz é também um compositor imaginativo, que sabe amarrar o som e fisgar o ouvinte. Dedicado principalmente à criação de forrós (o grande balaio onde cabem baiões, xotes, sambas e marchas), deu vida a melodias elaboradas e expressivas, com um efeito infalível sobre quem as escuta. Suas composições despertam aquela vontade repentina de balançar o corpo e assobiar junto com o tocador. É uma música forte, quente e doce. É como virar uma dose de aguardente e depois morder um caju pra tirar gosto.

A família de Luiz foi sua primeira referência musical: o avô, Severino Paixão (de quem herdou o nome artístico) e os tios Manoel e Antônio tocavam rabeca; o pai, Odilon, tocava triângulo; e um primo de segundo grau, Zé Alves, era um dos rabequeiros mais famosos e admirados na região. Aos 12 anos já “tava pelo mundo” e arriscava os primeiros toques na rabeca. Por volta de 1964, aos 15 anos, participou pela primeira vez de um cavalo marinho, no brinquedo de Mestre Memésio, em Tupaoca. Em 1977, após o falecimento de Zé Alves, foi escolhido pelo Mestre Batista para substituir o rabequeiro no célebre cavalo marinho sediado em Chã de Camará, Aliança, posto que ocupou por duas décadas, tocando ao lado de Biu Roque, Mané Roque, Sidrak e Mané Deodato. No tempo em que conviveu com Batista, ouviu do amigo: “nada se ensina, tudo se aprende”. Luiz aprendeu e ensinou.

Já era considerado na região um mestre do instrumento quando, em 1991, conheceu um jovem recifense, um estudante de música chamado Siba. Na ocasião, aluno da UFPE, Siba acompanhava o etnomusicólogo norte-americano John Murphy numa pesquisa de campo em Chã de Camará, como parte do doutorado do “João Americano” a respeito do cavalo marinho pernambucano. O impacto da música produzida por Luiz e seus companheiros foi tão grande sobre Siba que acabaria por influenciar não só a carreira artística e profissional do recifense – levando à criação da banda Mestre Ambrósio, à (re)introdução da rabeca na indústria fonográfica e à renovação do interesse pelo instrumento para além dos limites da mata norte pernambucana – como transformaria a vida profissional e artística do próprio Luiz. Quase três décadas após esse encontro, o rabequeiro pode ser considerado uma das maiores referências para a geração de músicos nordestinos surgidos a partir do manguebit, despertando também o interesse e admiração de etnomusicólogos, estudantes e artistas de outras partes do mundo.

Luiz, assim como muitos outros artistas brasileiros de tempos passados e atuais, realizou algo improvável: nascido nas entranhas do imenso e antigo moinho de gente e de idéias que é este país, deu um drible no destino e, apoiando-se na força criativa de sua comunidade, fez de si mesmo um músico enorme.

Saúde e alegria, Seu Luiz!


Caçapa
São Paulo, junho de 2020.

 

 

Numa noite olindense de muito forró de rabeca, no comecinho dos anos dois mil, tive a sorte de conhecer Seu Luiz. De lá pra cá, nutrimos uma amizade e parceria, que culmina na gravação deste álbum. O repertório do disco, escolhido a dedo pelo mestre, é uma mescla de suas composições preferidas, de musicas inéditas e de temas de domínio publico. Uma amostra considerável de ritmos do Nordeste brasileiro, passando por Sambas, Forrós, Cocos, Cirandas e Cavalos-Marinhos.

Mestre Luiz Paixão fez questão de reunir no estúdio seus antigos companheiros de brinquedo da Zona da Mata Norte e os jovens músicos que o acompanham em suas turnês internacionais. Para incrementar, decidiu convidar seus discípulos Renata Rosa e Siba para virem abrilhantar a celebração dos seus 70 anos.

A gravação ocorreu entre 12 e 19 de março de 2020, bem no comecinho da pandemia do Covid19, no Estúdio Gargolândia em SP. Aproveitando as 5 salas disponíveis, optamos por gravar em situação ao vivo e em seguida completamos com coros, cordas e percussões adicionais. Uma maneira de conservar a espontaneidade e a energia que movem a musicalidade de Seu Luiz, sem perder a possibilidade de retrabalhar o som de uma maneira mais ousada e atual. Processo atingido com êxito graças ao trabalho minucioso do Gilberto Monte.

Esse método de gravação expõe os músicos de maneira mais cru, humana, revelando imperfeições e momentos de pura magia, que nenhuma musica escrita no mundo poderia desvendar. A beleza impar da arte do Mestre Luiz Paixão reside em parte nessas asperidades, acessos de genialidade que fizeram o renomado violonista francês Didier Lockwood apelidá-lo de "Paganini da Rabeca".

Longa vida Mestre Luiz Paixão!


João Selva
Lyon, agosto de 2020