Sesc SP

postado em 09/08/2021

Poéticas

Detalhe da capa de Poéticas | Imagem: Claudia Lammoglia e Luiz Nogueira
Detalhe da capa de Poéticas | Imagem: Claudia Lammoglia e Luiz Nogueira

Agitador cultural, contestador e plural, Jorge Salomão transitou entre o teatro, a poesia, a performance e a música como quem cruza uma avenida movimentada, beirando os carros e se esquivando das motos no corredor. Depois de colecionar mais de 60 canções ao longo de sua prolífica trajetória, em especial sucessos radiofônicos como "Pseudoblues" que Marina Lima cantou em seu disco Virgem (1987) e "Sudoeste" com Adriana Calcanhotto em seu Fábrica do Poema (1994), entre outros versos emprestados a vozes chaves da música brasileira como Zizi Pozzi, Frejat (e o próprio Barão Vermelho), Nico Rezende e até uma parceria com Waly Salomão, seu irmão tropicalista, em uma versão inusitada de "Human Nature" de Michael Jackson, Jorge conseguiu mapear uma fração de sua produção como letrista e convidou o diretor artístico Luiz Nogueira para construir um disco tributo à sua obra.

O trabalho contou com a participação de Salomão durante todo o processo de gravação, que durou até pouco antes do poeta e letrista baiano, radicado no Rio de Janeiro, vir a falecer, em 7 de março do ano passado, aos 73 anos. Da escolha das faixas aos cantores e cantoras, o álbum "Poéticas" leva a assinatura de Jorge Salomão e apresenta suas canções feitas ao longo de sua carreira, com a participação de 12 cantores e cantoras de diferentes gerações.  “O álbum com o cancioneiro do poeta Jorge Salomão só poderia reproduzir seu espírito plural e aglutinador, com a presença de artistas que falam à diversidade de seu gosto. Esse conjunto de vozes dão unidade poética à sua obra dispersa em discos de seus intérpretes e parceiros. Com o disco, Jorge passa a ser visto por trás de todas as vozes. E sua obra ganha a dimensão musical que ele sempre ambicionou”, afirma o jornalista Claudio Leal, amigo de Jorge e idealizador do projeto.

O álbum completo estará disponível nos principais tocadores de música a partir de 13 de agosto. E se você rolar um pouco mais pra baixo, pode ler dois textos que apresentam tanto o repertório como esta figura múltipla das artes no Brasil, cujas contribuições ainda estão em vias de serem deglutidas e apreciadas por nós.

Trulli
O poeta-malabarista Jorge Salomão | Foto: Elena Moccagatta

      


 

Seduzido pelo mito de Oxóssi, o orixá das matas, Jorge Salomão é um caçador solitário, de arco tenso e moradia incerta, que faz de todas as pensões um lar e de todos os lares uma pensão. Nasceu árabe em Jequié, conheceu suas utopias em Salvador, amargou a prisão em São Paulo e caiu nas areias do Rio de Janeiro como um dos corações solares das Dunas do Barato, ao lado de Gal, Torquato e Waly. Nessas praças, foi companheiro do tropicalismo de Caetano e Dedé. A ronda das cidades prosseguiu nos anos 1970, em Nova Iorque, onde envergou o sobretudo de poeta devorador dos apelos estéticos do Greenwich Village. À procura de liberdade no sexo e na política, tornou-se filho das conquistas de Bertolt Brecht, Andy Warhol, Allen Ginsberg, Sartre e Simone de Beauvoir.

Certo dia, ignorando os protestos de Hélio Oiticica, Jorge gritou o nome de Warhol ao vê-lo passar na Sexta Avenida. Mestre mundano, Warhol lhe acenou com um sorriso, sem saber que ali abençoava outra alma de escolhas impuras a caminho da pureza. Extremado, inquieto, faiscante e erótico, o poeta alarga as vogais e embaralha o jogo, acende os lustres dos desejos, dobra a aposta; à noite, é uma ventania sacudindo as nossas janelas. Ele age contra as amizades mornas e insiste em nos reconhecer como seus amantes e confidentes. Não tenha medo. Jorge, pai de João, mora no alto de Santa Teresa e nas alegrias futuras.
Poéticas, assim no plural, é o álbum de canções de um artista numeroso: diretor teatral, ator, iluminador, agitador, letrista, performer. Ou, numa síntese, poeta e malabarista. Seu destino é um lance de dados, seu reino é deste mundo. E ele, Navilouca, só se estabiliza quando em chamas. A poesia de Jorge Salomão domina a linguagem do fogo e nos convida a dançar em volta de sua fogueira.

Claudio Leal
 

      


 

São Paulo, primavera de 2020.

Me chamam vento....

Querido Jorge,

Terminamos! Preciso lhe dizer: que saudade, amigo!

Vamos abrir o álbum com “Sudoeste”. Afinal, o vento foi sempre seu arauto. E Almério fez pra gente uma versão tão linda que servirá de prelúdio para os tambores que ressoam seus versos.

Nossa viagem segue com “Pseudoblues”, que, na voz profunda e certeira de Mônica Salmaso, parece um mantra entre os acordes mouriscos das guitarras de Webster Santos.

O piano de Guilherme Ribeiro vai bordando o caminho de “Noite” e, assim, Renato Braz acende o rastilho de notas que vai queimando, lentamente, até tudo se iluminar.

Como você viu, Áurea Martins estraçalhou com “Só Quero Cantar”. Parece que você escreveu essa canção de presente para seus 80 anos, mas foi ela quem nos presenteou com essa versão primorosa. Ainda pediu ao maestro Mario Gil que não se esquecesse do prometido trompete.

E Zélia Duncan, que também sabe o caminho dos ventos, guiou-nos como um passarinho por “Aquela Estrada”.
Jorge, e aquelas frutas que Jussara Silveira nos deu? Que delícia ouvir “Do Sertão ao Mar” naquela doçura de voz. E Daniel Allain arrasou naquele flugel marcado pelo baixo de Marcelo Mariano. Lindo! Jussara me confessou que a canção é a história da vida dela. Mas também é a sua, certo?

Como você me disse, Jorge, os tempos estão difíceis e o blues “Comendo Vidro”, na voz de Zeca Baleiro, ajuda a transformar nossa dieta vítrea num prato um pouco mais palatável nessa pandemia, muito bem temperado pelo trompete de Daniel Alcântara.
Bem, agora vamos seguindo esse destino acompanhados de seres alados, encantados, apaixonados, em “Anjo”, que Cezinha Oliveira arranjou com tanta delicadeza, toda assobiada pela flauta de Daniel Allain e com a bateria sofisticada de Edu Ribeiro. Um luxo! Quando você me apresentou essa canção me veio imediatamente à cabeça a voz de Wanderléa. Essa era dela! Agora também é ela!

Aquele menino lindo de Pernambuco, o Almério, como você sempre diz, veio nos lembrar que a vida “É Tudo Ficção”. Trepidando com o baixo de Sizão Machado e com o piano de Guilherme Ribeiro, sua voz de peito, agreste, deu uma versão velosiana à canção, além de marcar o hiato do tempo com seu aboio.

Uuuuuuuh… Me chamam vento… Bem, ele já disse tudo! A gente gostou tanto dessa versão de Dani Black para “Fúria e Folia” que dançamos muito, lembra? Com as batidas de sua guitarra e sua interpretação única nos deixamos levar e fomos muito felizes em vê-lo abusando deliciosamente das harmonias em Rhythm and Blues, Soul e Black Music.

Poeta, emendamos com a potência de Khrystal soprando e derrubando tudo, dando a todos nós o direito à “Política Voz”. Desenhada pela percussão de Gello e marcada pelo sax barítono de Bira, que elegância! Essa canção, tão necessária, lembra-nos de que é preciso dissipar a nuvem carregada que vem perturbar.

Chico Chico fez de “Olhos Fechados” a canção que pulsa e que preenche todo o vazio da cena. Ele soube iluminar sua poesia, Jorge, com uma interpretação que amalgama uma voz de felino jovem, mas que esturra e rosna feroz. Aqui a intuição é genética, não é mera coincidência!

Jorge, a sanfona de Guilherme Ribeiro veio e trouxe “Eu Sou Um” no folguedo de Patrícia Mellodi, que é várias em uma. A canção ficou mesmo uma delícia! Você tinha razão!

Bem, Jorge, fechamos o trabalho com a inédita de seu parceiro mais frequente. Ou, como vocês se tratam, de seu compadre Frejat, que fez de “Todas as Manhãs” essa versão especial para o álbum, alimentando a esperança que você sempre semeou em todos nós aqui.

Caríssimo amigo poeta, agradeço imensamente a confiança e espero que este tributo à sua obra possa dar ao mundo uma pequena ideia de sua alegria, sua competência e sua generosidade. Mario Gil, Danilo, Webster, Cezinha, Guto, Claudio, Regina, Mari e Rafa mandam abraços saudosos.

Muito axé, sempre!

Seu amigo, Luiz Nogueira.