Sesc SP

postado em 22/02/2017

Guarnieri e Nepomuceno

A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, sob a batuta de Fabio Mechetti na sala Minas Gerais
A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, sob a batuta de Fabio Mechetti na sala Minas Gerais

Guarnieri e Nepomuceno

por Camila Frésca

 

 

O Selo Sesc reúne nesse lançamento obras para piano e orquestra de dois dos mais importantes compositores brasileiros: Alberto Nepomuceno e Camargo Guarnieri. Some-se a isso a qualidade da gravação e da interpretação, com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – um dos melhores conjuntos sinfônicos do Brasil – sob a batuta de seu maestro titular Fabio Mechetti. A solista é a excelente Cristina Ortiz, que possui um longo envolvimento com a obra de Camargo Guarnieri. Assim, a ocasião torna-se mais do que propícia para ouvir obras pouco gravadas e menos conhecidas do que deveriam.

 

 

 


Nacionalismo e o ser nacionalista

 

De gerações diferentes, tanto o cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) quanto o paulista Camargo Guarnieri (1907-1993) ficaram marcados profissionalmente por seu engajamento com a música dita nacionalista – cada um deles, no entanto, trabalhando esse elemento em sua música de forma distinta. Conforme nota a professora e pesquisadora Flávia Toni no texto do encarte do CD, “foram músicos integrados em seus tempos e sociedades, e militaram para retraçar os espaços da música brasileira, pelo que estão associados às questões sobre o nacional, o nacionalismo e o ser nacionalista em música, conceitos diversos uns dos outros e com frequência tomados como equivalentes”. Quando se fala em música nacionalista, aliás, alguns imaginam uma música pouco elaborada, que consistiria essencialmente em harmonização de material folclórico ou tradicional. Nada mais diverso do que a obra sofisticada e rica desses dois compositores.

 

 

 

 

 

 

O piano foi o primeiro e principal instrumento de Camargo Guarnieri. Embora não tenha sido um virtuose, era um instrumentista talentoso e um ótimo pianista acompanhador. É com o piano que se dá sua primeira incursão no gênero sinfônico: o Concerto para piano n.1, de 1931, foi escrito 13 anos antes de sua primeira sinfonia. No total, foram dez obras para piano e orquestra ao longo de 56 anos. A obra que abre o CD é o Concertino para piano e orquestra de câmara. Foi escrito em 1961 e é dedicado à Vera Sílvia, com quem o compositor havia acabado de se casar. A peça é escrita nos três movimentos tradicionais de concerto, sendo os dois primeiros, Festivo e Tristonho, unidos. A obra já se inicia com um ritmo preciso e animado que serve de introdução à melodia do piano, alegre e que se utiliza de modos comumente encontrados na música tradicional do nordeste. O movimento lento (Tristonho) é breve, e com uma seção intermediária (Vivo) mais animada, com caráter de scherzo. Finalmente, temos o Alegre final, em forma de rondó, e no qual se percebe nitidamente o uso de temas populares – ou ao menos temas do próprio compositor diretamente inspirados na cultura popular, como o frevo. O Concertino é uma obra solar, que irradia a alegria que seu autor deveria sentir naquele momento. Estes elementos explicam, provavelmente, porque esta obra está entre as mais populares do compositor.

 


O Choro para piano e orquestra foi a obra para esta formação escrita imediatamente antes do Concertino, em 1956. Trata-se de uma época em que Camargo Guarnieri estava especialmente envolvido com as questões nacionalistas – basta lembrar que foi no início dessa década, em 1950, que veio a público a polêmica “Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil”. Tais preocupações se manifestam já no título da obra, que utiliza a palavra “choro” substituindo o termo “concerto” e indicando seu caráter nacionalista (seu primeiro choro foi escrito para violino e orquestra em 1951). O Choro para piano e orquestra já é obra de um compositor maduro e com pleno domínio da técnica composicional. É uma obra igualmente escrita em três movimentos, todos indicados em português: Cômodo, Nostálgico e Alegre. O primeiro, de escrita livre e caráter brilhante, de fato parece querer remeter aos choros e serestas populares. Nostálgico, o movimento intermediário, é um típico movimento lento de Camargo Guarnieri, denso e um tanto tristonho, no qual ele revela sua mais íntima sensibilidade e nostalgia. Finalmente, o movimento final encerra a peça com rítmica incisiva e orquestração brilhante.

 




Cristina Ortiz ao piano - Foto: Ivan Cavalcanti

 

O humorístico sem deboche

 

O último conjunto de peças do disco são as surpreendentes Valsas humorísticas de Alberto Nepomuceno. Cada uma delas parece fazer referência a uma peça conhecida do público, numa grande brincadeira entre o piano e a orquestra. O humorístico deriva do fato dele citar peças de outros autores, mas isto nada tem de deboche. Tal como em Camargo Guarnieri, o piano teve uma posição central na carreira de Alberto Nepomuceno. Ele escreveu mais de 30 obras para piano solo, arranjos para dois piano de obras suas e as Valsas humorísticas para piano e orquestra (consta ainda para esta formação um Concertstück escrito quando ele ainda estudava em Roma, mas a obra está extraviada e talvez nunca tenha sido completada).

 

As Valsas foram compostas provavelmente um pouco antes de 1902, quando aconteceu sua estreia em Petrópolis. O professor e pianista Luiz Guilherme Goldberg, que realizou uma edição crítica da partitura, nos revela uma fato curioso: o de que, à época das primeiras audições da obra, no início do século XX, seu o caráter nacional era apontado por praticamente todos os que a escutavam – embora esse não seja um elemento evidente à nossa escuta contemporânea. Para nós, o que salta aos ouvidos é, de um lado, uma escrita refinada e exuberante e, de outro, as bem boladas citações de outros autores no meio das Valsas. Em alguns momentos, como no início da Valsa n.2, fica evidente o clima wagneriano. Já o tema principal da Valsa n.4, apresentado logo no início e que retorna ao longo da peça, parece vir da Suíte Dolly de Gabriel Fauré, escrita entre 1893-1896, portanto pouco antes da obra do autor cearense. As citações mais célebres estão na Valsa n.5, que se inicia com o Danúbio azul, de Johann Strauss, para pouco tempo depois emendar a Valsa op.64 n.1 “do Minuto” de Chopin. A Valsa n.6 procura fechar o ciclo repetindo elementos das valsas n.1 e 2.


As audições das Valsas humorísticas sempre causaram certa perplexidade nos críticos e no público, seja pelo ineditismo da obra, seja pela virtuosidade exigida na performance. “Nepomuceno, ao citar trechos de outros autores (...) fez uma paródia utilizando-se de um humor requintado e elegante, o que ocorre pela primeira vez na música brasileira de concerto”, afirma Luiz Guilherme Goldberg. Embora sendo uma obra importante de Nepomuceno, ela ficou esquecida durante décadas e foi poucas vezes executada após as primeiras audições, logo após sua composição. Daí a importância de tê-las novamente no repertório, com a ótima intepretação de Cristina Ortiz e da Filarmônica de Minas Gerais.

 

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Se você se interessou pelos termos citados no texto, dê uma olhadinha nesse vídeo do Festival Sesc de Música de Câmara, onde cada um deles está explicado e exemplificado - tem também a série O Que É!? daqui do Selo. Para se aprofundar no som e na escrita para um grupo como a filarmônica, recomendamos a série de DVDs O Som da Orquestra, de João Marcos Coelho com os episódios "Piano - Uma História de 300 anos", "A Família das Cordas" e "A Democracia das Madeiras" - vale a pena!

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