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postado em 13/09/2017

Encantaria - Grupo Anima

grupo anima

Continuando a trilogia iniciada pelo álbum Donzela Guerreira, o Grupo Anima, em Encantaria, interpreta peças que se referenciam no mito do Rei Encantado, Dom Sebastião (1554-1578). O projeto resulta na criação coletiva de um roteiro dramatúrgico musical que conduz o ouvinte a uma concretização contemporânea da música tradicional brasileira, onde as fronteiras entre as matrizes e entre os tempos mítico e histórico são diluídas. O grupo conta com a colaboração do fotógrafo Fernando Laszlo, da antropóloga Mundicarmo Ferretti e da escritora Walnice Nogueira Galvão que assina o texto que você lê abaixo.

 

 

D. SEBASTIÃO ABRE ALAS E PEDE PASSAGEM

 

O ponto de partida deste CD, seu tema central, que perpassa por toda a seleção musical, é um dos mais arraigados mitos luso-brasileiros: os afloramentos do sebastianismo que lá e cá repontaram.


O Rio de Janeiro, durante séculos capital do Brasil e até hoje seu cartão postal, é uma cidade dedicada a D. Sebastião, seu padroeiro. Foi fundada como A mui leal e valerosa cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, no dia do aniversário daquele que era então o rei de Portugal (20 de janeiro de 1565). Ele próprio assim se chamava porque nascera no dia de S. Sebastião (20 de janeiro de 1554), e por isso o papa lhe enviara de presente uma das flechas que tinham traspassado o santo em seu martírio. Como, na realidade, a cidade foi fundada no dia 1º de março de 1565, até hoje disputa-se qual a verdadeira data do aniversário – mas a homenagem permanece.


D. Sebastião era rei de Portugal quando, aos 24 anos, comandou uma impensada e anacrônica cruzada contra os mouros do Marrocos que redundou em desastre. As forças cristãs, compostas pelo que de melhor e mais promissor havia na juventude nobre do país, foram dizimadas na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Pereceu o rei, que ainda era solteiro, pereceram todos os seus cavaleiros, e seu corpo nunca foi encontrado.


A catástrofe teria como consequência a perda da soberania. Por falta de herdeiros da linhagem real, a coroa passou para a Espanha e só em 1640 Portugal a recuperaria.


Um rei que desaparece sem que seu corpo seja encontrado é matéria para messianismo, fenômeno universal. O rei estaria vivo, mas encantado, nas Ilhas Afortunadas, oculto pelas brumas, de onde um dia se desencantaria e viria regenerar Portugal, reinstaurando o país nas glórias de outrora. Agora ele era O Encoberto.


Não eram tão remotos os tempos de seu bisavô D. Manuel o Venturoso, assim chamado graças às conquistas planetárias que engrandeceram o império. Entre outros feitos, foi na vigência de seu reino que se descobriu o caminho para as Índias e também o Brasil.


Mas era profunda a ferida resultante da morte do rei e da perda da autonomia. Nasceu o sebastianismo, deixando marcas indeléveis no corpo social e na literatura lusa. Falsos Dom Sebastião apareceram sucessivamente, arrastando o povo que lhes dava fé e acorria a seu apelo. As famosas Trovas do Bandarra – um sapateiro vidente – foram lidas não como quimeras proféticas, mas como reatualizações de Nostradamus; e tanto em Bandarra quanto em Nostradamus seria possível decifrar indicações da volta do Messias.
Essa forma peculiarmente luso-brasileira de messianismo – quando, em tempos de crise, o povo incorpora um salvador – resultou em surtos de sebastianismo que dilaceraram a história de Portugal e do Brasil.


De fato, a morte de D. Sebastião encerra, com estrondo, o grande período das navegações e descobrimentos, fase áurea que terminou abruptamente, entrando desde então a nação portuguesa em decadência da qual não mais se recuperaria. Tanto basta para criar um mito e suas irradiações.


Em Portugal, resultou em alta literatura e inspirou os maiores escritores. A epopeia nacional Os Lusíadas de Camões, que louva as glórias dos portugueses e sua inserção na história universal, é dedicada a D. Sebastião, trazendo admoestações a El-Rei no sentido de expandir o reino.


Logo depois, surgiria a utopia do Quinto Império preconizado pelo padre Antonio Vieira. Nascido e educado sob domínio espanhol, Vieira tentou convencer o rei D. João IV de que cabia a Sua Majestade assumir pessoalmente a missão d’O Encoberto.
Sinais como esses impregnariam a obra de Fernando Pessoa, especialmente Mensagem. O poema “D. Sebastião, rei de Portugal”, ao fazer o elogio da loucura, a que se deve o desatino da empreitada da última cruzada e por isso mesmo sua grandeza, termina por notáveis versos: “Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?”.


Afora a literatura e a iconografia, o alcance popular do mito se expressa igualmente na criação incessante de fados, a canção típica de Portugal, que falam de D. Sebastião e que ainda hoje são compostos. No cinema, ilustre registro é o filme Non ou a Vã Glória de Mandar (1990), realização do maior diretor de toda a história de Portugal, Manoel de Oliveira. Retratando os principais episódios bélicos da crônica de seu país, vai de Viriato e a resistência aos romanos até a guerra colonial contra Angola e Moçambique. Um dos episódios trata de D. Sebastião e Alcácer-Quibir.  Voltaria à carga mais tarde, filmando O Quinto Império – Ontem como hoje (2004), baseado no drama de José Régio El-Rei Sebastião, que ganharia o Leão de Ouro no festival de Veneza.


ATRAVESSANDO O ATLÂNTICO


Mas O Encoberto não permaneceu apenas em seu país de origem. Antes, dotado do dom da ubiquidade, como qualquer mito que se preze, tratou de atravessar o Atlântico.


Entre as mais famosas, e até famigeradas, manifestações sebastianistas em nosso país, destaca-se o episódio de Pedra Bonita, que ficou conhecido pelo nome da localidade onde ocorreu. Serviu de base para os romances O reino encantado, de Araripe Jr., Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego e A pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Também iria aparecer no filme Deus e o Diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha.


Em 1836-1838, em Pernambuco, no sertão do Pajeú assolado periodicamente pelo flagelo da seca, um surto messiânico sublevou a população pobre da localidade. Seus rituais incluíam sacrifícios humanos, fiados em que o sangue vertido sobre a Pedra Bonita – um par de monólitos, simbolizando as torres de uma catedral supostamente soterrada – desencantaria D. Sebastião, que surgiria de dentro dela. Com seu advento, ele instauraria uma Idade de Ouro, trazendo prosperidade para todos aqueles pobres miseráveis. Chegaram a sacrificar 87 pessoas, e consideravam o sangue das crianças especialmente cheio de virtude.  Seu chefe se chamava “Rei D. Sebastião” e o grito de guerra dos rebeldes era “Viva el-rei D. Sebastião!”. O levante foi reprimido pelas forças armadas, com grande morticínio.


Tempos depois, haveria a Guerra de Canudos. Nesse lance, ocorrido em 1896-1897, o exército assediou e destruiu o arraial de Canudos, onde se concentrava uma população pobre que, sob a liderança de Antonio Conselheiro, entregava-se a rezas e penitências para salvar a alma. O movimento era messiânico e milenarista, mas só impropriamente pode ser chamado de sebastianista. Os fiéis não viam em Antonio Conselheiro nem o rei nem o santo, e nem ele próprio como tal se identificava, o que comprovam seus dois livros de sermões.


Mas foram encontradas nos escombros do arraial pelo menos duas quadrinhas e uma profecia falando em D. Sebastião, anotadas por Euclides da Cunha, o que mostra como essa figura está praticamente pronta para ser utilizada, se for o caso. 


A maior das rebeliões messiânicas, e esta sim francamente sebastianista, foi a Guerra do Contestado, que conflagrou parte dos estados do Paraná e de Santa Catarina, de 1912 a 1916. Era assim chamada porque uma faixa de terras ao longo das divisas entre os dois estados era considerada território contestado. Os rebeldes eram posseiros sem título de propriedade expulsos de suas terras pela construção de uma estrada-de-ferro inglesa, a Brazil Railway que, juntamente com a concessão e indiferente a quem já as ocupasse, obteve a propriedade das terras que se situassem a uma distância de 15 quilômetros de cada margem dos trilhos.


O conflito durou vários anos, envolveu um número enorme de pessoas e ocupou um vasto território. Embora não tenha a mesma ressonância, pois lhe faltou um monumento literário como o que Euclides da Cunha erigiu, foi muito mais importante que a guerra de Canudos. 


A Guerra Santa, como era chamada pelos crentes, criou uma Monarquia Celeste, na qual o rei, ao mesmo tempo o comandante e D. Sebastião sincretizado com S. Sebastião, era acolitado por uma guarda de honra de 24 cavaleiros, chamados Os Pares de França, por influência da saga de Carlos Magno. Eram contra a República, a que se referiam como a “Lei do Diabo”. Suas hostes eram conhecidas como o Exército Encantado de D. Sebastião. Quando obtivessem a vitória, D. Sebastião se desencantaria. Debelada pelas tropas, a rebelião tinha vários redutos, um deles chamado S. Sebastião, para os quais os rebeldes foram se retirando e se fortificando para resistir. Efetuaram muitos saques e invasões de fazendas. Seriam dizimados pela fome e pelas armas.


Para que não se diga que D. Sebastião desertou do Brasil, é recente sua intervenção em favor de uma festa popular, de que é testemunho o CD intitulado “D. Sebastião veio salvar o carnaval de Olinda”. Entra ano, sai ano, frequenta a maior de todas, o carnaval do Rio de Janeiro. A Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, uma das mais tradicionais, já entoou loas a “O Rei de França na Ilha da Assombração”, com enredo e samba-enredo sebastianistas. Definiu-se ali o estilo do maior de todos os carnavalescos, Joãozinho Trinta, maranhense de São Luís, deslanchando sua carreira, que lhe renderia oito prêmios pelo melhor desfile de carnaval.
E é em Lençóis, no Maranhão, nas cerimônias do Tambor de Mina, que ele persiste até hoje, encantado num touro negro com uma estrela de ouro na testa, objeto de culto. 


* * *


Quando sugeri ao pessoal do Grupo Anima um espetáculo em torno da figura de D. Sebastião, tinha em mente algumas linhas-mestras. Havíamos trabalhado juntos numa adaptação de meu livro A donzela guerreira. Esse trabalho rendeu um CD com ilustrações de Adão Pinheiro que já figuravam no livro, então aproveitadas como cenário de oito belos concertos e mais um concerto de síntese no Theatro Municipal de São Paulo, com carreira posterior pelo país e mundo afora.


Para o presente espetáculo, Encantaria, apresentei o histórico do tema em literatura, música e cinema, dando ao Grupo Anima as principais ocorrências. De Os Lusíadas de Camões, dedicado a D. Sebastião, como vimos, as admoestações a El-Rei e a fala do Velho do Restelo, coalhada de ominosas alusões proféticas. Das Trovas do Bandarra, as mais significativas. Trechos dos sermões do padre Antonio Vieira sobre o Quinto Império. A peça de teatro de José Régio. Os filmes de Manoel de Oliveira. Os fados sebastianistas. E, finalmente, o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, em que D. Sebastião é protagonista. Ali, entre outros, figura um ponto alto da poesia de língua portuguesa, o poema “D. Sebastião, rei de Portugal”, supracitado em seus versos finais.


Do lado de cá do Atlântico, forneci resumos dos principais eventos do sebastianismo epidêmico, como o caso de Pedra Bonita e a Guerra do Contestado, de sebastianismo explícito. Em outra instância, a Guerra de Canudos, como vimos, o sebastianismo mal aflora. E comuniquei as visitações de D. Sebastião camuflado em touro negro em Lençóis, no Maranhão, fonte de pesquisa de campo para o pessoal do Anima. Entre muitos outros, canta-se por lá este ponto:

 

Rei Sebastião quando venceu a guerra
E foi com a sua espada na mão

 

O que mostra, ao fim de contas, importar menos o fato histórico do que a verdade do imaginário.

 

Walnice Nogueira Galvão
Professora Emérita da FFLCH-USP

 

 

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