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postado em 30/05/2018

Tradição Improvisada - Nelson da Rabeca e Thomas Rohrer

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O encontro entre Thomas Rohrer, Seu Nelson da Rabeca e Benedita dos Santos se deu, antes de qualquer coisa, pelas rabecas produzidas por Nelson dos Santos. O instrumento, de timbre tão peculiar, permitiu que as sensibilidades musicais dos músicos de Alagoas e da Suíça começassem uma conversa.

Seu Nelson

A música chegou tarde para Nelson. Embora possua memória extensa do repertório da música popular executada no Alagoas, o instrumentista, compositor e luthier, voltou-se para as artes depois de décadas de trabalho penoso no corte de cana. Depois de se impressionar com o som do violino, pela televisão, ele decidiu reproduzir um instrumento de cordas, a ser tocado com arco.

Seu Nelson

Descobriu como fabricar, afinar e tocar a rabeca por conta própria. Embora análogo, o instrumento de Nelson não soa uniforme como os das cordas da orquestra. Seu som tem um zumbido metálico. O rabequeiro deixa ranger as cordas e acorde após acorde, faz com que o som rouco emule harmonias que nos remetem às cantigas medievais, às cirandas e aos xotes dos cantores de rádio. O timbre é arranhado, mas o toque é festivo. Com mais de 50 anos de idade, o artista descobriu uma maneira de viver mais intensamente pela música. Faz tempo que ele é jovem desse jeito.

Seu Nelson

Esse som original, incontrolável, temperado de maneiras não convencionais, fez com que Thomas Rohrer se iniciasse na rabeca. Quando chegou no Brasil, o músico suíço não tocava mais o violino que aprendera na infância, tornara-se saxofonista de recursos infinitos. Dedicado à produção de música nova, ele fez da improvisação livre seu método principal. Para Rohrer, o improviso é um modo de evitar os cacoetes harmônicos tradicionais e buscar maior diálogo com outros procedimentos criativos. A sua música parece mais espontânea, aberta a novos sons, novas formas de tocar.

Seu Nelson

Conheceu a rabeca no fim da década de 1990, por meio de Zé Gomes, um dos músicos mais importantes do Brasil. O instrumento pôs Thomas em contato com timbres inusitados e um repertório rítmico saído do sertão nordestino. O som que lhe chamou a atenção foi o da rabeca de Seu Nelson. Quando pôde, Thomas Rohrer adquiriu um instrumento e se aproximou do rabequeiro de Marechal Deodoro (AL). Ali nasceu a colaboração musical que resultou em Tradição Improvisada. Infelizmente Zé Gomes, outro interlocutor dos dois músicos, não sobreviveu para participar do projeto.

Nesse disco, Nelson da Rabeca, Benedita dos Santos, Thomas Rohrer e Panda Gianfratti trabalham com sons ásperos. A voz e os instrumentos lembram o carro de boi, os gritos roucos do dia de trabalho, o atrito entre madeiras, metais e rochas. No entanto, o modo como esses sons são articulados dão a eles um tom de celebração, de alegria incontida, como se com aquele pouco a vida pudesse se tornar uma festa interminável. Em uma das faixas do disco, a partir de rangidos desencontrados, os músicos encontram uma progressão de acordes que nos lembra um trechinho de Cintura fina, de Luiz Gonzaga. Sons rudes vão estabelecendo contatos gentis, festivos, como se um convidasse outro a abrir a carranca e aproveitar a vida.

Seu Nelson

Aliás, são as letras de Benedita que melhor expressam esse esforço para encontrar uma canção que faça sentido para a vida de todos. Suas palavras musicadas são fundamentais no disco. Elas falam de amores que não pedem nada em troca, do encontro com maravilhas naturais e sobrenaturais e da felicidade que a música trouxe a ela e a Nelson.

As músicas também são sobre encontros, amor e amizade. Um desses encontros é o da cultura popular com a improvisação livre: duas formas de resistir à homogeneização da música pela indústria cultural. Aqui, essas formas de arte dançam juntas no baile infinito de Nelson da Rabeca e Thomas Rohrer. 

Texto: Tiago Mesquita
Fotos: Flavio Vogtmannsberger

 

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