Sesc SP

postado em 25/06/2018

Radamés Gnattali - Trio Puelli

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Certa vez num texto, Junichiro Tanizaki, grande escritor japonês, comparou as histórias da Europa e do Japão. Ele dizia que os europeus tiveram a felicidade de que a sua história se desenvolvesse em etapas, cada uma delas derivada das transformações internas da anterior, enquanto no Japão, em particular desde a Segunda Guerra Mundial, sua história, isto é, o sentido dela, foi alterada a partir de fora pela superioridade militar e tecnológica "ocidental".

Se olharmos para a America Latina, mais especificamente para o Brasil, sabemos que uma das mais ricas heranças intelectuais e artísticas da espécie não só ficou destruída, mas sobretudo a sua parte mais elaborada, representada pelas culturas que aqui habitavam antes do encontro com o homem europeu, ficou inacessível para os habitantes deste mundo. O trabalho de resgate a estas tradições, não somente para devolvê-las ao público, mas para resignificá-las dentre um âmbito que pode ser considerado "popular" coube aos músicos e compositores que perpassaram a nossa tão querida história. Um deles, sem dúvida, foi Radamés Gnattali.

No ano em que completa 30 anos da morte do compositor e arranjador, o Selo Sesc lança álbum do Trio Puelli interpretando cinco peças – sendo duas inéditas – do maestro, pianista e violista Radamés Gnattali (Porto Alegre 1906 - Rio de Janeiro 1988). O trabalho de resgate e catalogação de Karin Fernandes (piano), Ana de Oliveira (violino) e Adriana Holtz (violoncelo), com colaboração de Roberto Gnattali, sobrinho do célebre músico, encontrou partituras e manuscritos para trio em piano, violino e violoncelo até então desconhecidos e agora gravados. E para celebrar este lançamento, um show único no teatro do Sesc Pinheiros.

Quem se incube de falar sobre este grande compositor brasileiro, é Irineu Franco Perpétuo, que assina o texto do encarte do disco. Você assiste ao making of do álbum abaixo e logo em seguida vem o texto.

 

Irineu Franco Perpétuo

 

"Assim como ocorreu com outras formas musicais típicas do Classicismo vienense, como o quarteto de cordas e a sinfonia, o trio com piano teve floração relativamente tardia em solo brasileiro. Pode-se dizer que foi a geração que ascendeu com a Proclamação da República, em 1889, a romper com o monopólio da ópera italiana que vinha desde os tempos da Colônia, passando a se dedicar com afinco à música instrumental. Se os alentados trios de Henrique Oswald (1852-1931), Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Glauco Velásquez (1884-1914) ecoam com força o domínio cultural francês no Brasil da belle époque, logo esse sotaque parisiense seria engolfado pela onda musical nacionalista, proclamada de forma dogmática e peremptória por Mário de Andrade (1893-1945), no Ensaio Sobre a Música Brasileira (1928): “todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta”.

Dentre os compositores que se empenharam em não vestir a carapuça da “reverendíssima besta”, o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988) destacou-se pelo conhecimento privilegiado do material popular que deveria conferir o colorido “nacional” a suas composições “eruditas”. Não se tratava de um músico que estava artificialmente tentando aplicar fórmulas folclóricas aprendidas em laboratório a um molde pré-fabricado. Gnattali viveu intensamente a chamada Era do Rádio, e é reverenciado como o criador de um “jeito brasileiro” de fazer orquestração de música popular, graças a milhares de arranjos cujo ápice seria o cartão-postal musical da nação: Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso (1903-1964).

Ironicamente, essa “dupla militância” que hoje é vista como a força de sua obra foi, durante muito tempo, brandida contra o compositor. Dizia-se que os “vícios de linguagem” do Gnattali “popular” contaminavam a parte “erudita” de sua produção. Em 1969, o Concerto Carioca n.° 2, para piano, baixo, bateria e orquestra, chegou a ser vaiado no Festival da Guanabara, por um público sedento de “radicalidade vanguardista”. No terceiro milênio, porém, as certezas de uma linha evolutiva única para a História da Música se desfizeram; o ambiente eclético e “pós-moderno” passou a favorecer diversos tipos de “retorno” à tonalidade e diálogos com a música popular, e o interesse pela produção de concerto de Gnattali só fez se fortalecer. O “conservador” do século XX parece ter se convertido no visionário que anteviu o mundo sonoro do começo do século XXI.

A exemplo de outros compositores que praticaram o nacionalismo, como Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e Cláudio Santoro, Gnattali era descendente de italianos – embora mais tarde tentasse diminuir a importância dessa ascendência, afirmando, com a característica verve, que “a coisa italiana que eu mais gosto é polenta com passarinho”. A música estava no DNA familiar, como atesta seu prenome, tirado do herói da ópera Aida, de Verdi.

 

Em sua Porto Alegre natal, logo desenvolveria um conhecimento profundo tanto dos instrumentos de cordas, como do teclado – que se traduziria na maestria em que escreveria para ambas as famílias em seus trios para piano. Ao lado do também compositor Luiz Cosme (1908-1965), que era violinista, tocou viola no Quarteto Henrique Oswald, familiarizando-se desse modo com as minúcias e refinamentos da música de câmara. E, no piano, foi pupilo do célebre Guilherme Fontainha (1887-1970), desenvolvendo uma técnica sólida o suficiente para enfrentar obras virtuosísticas como a Sonata em si menor, de Liszt, e o Concerto n. 1 para piano e orquestra, de Tchaikóvski.

Foi com a ambição de ser concertista “erudito” de piano que Gnattali desembarcou no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, aos 18 anos, em 1924. O sucesso incial foi grande, mas as dificuldades financeiras também. O florescente mercado de música popular absorveu o músico que, a partir de 1932, pôs-se a atuar em orquestras de baile, operetas, gravações de discos e, especialmente, emissoras de rádio. No começo, escondia-se sob o pseudônimo de Vero (de Vera, nome de sua esposa). Afinal, naquela época, não “ficava bem” um músico “erudito” se dedicar ao popular, e Gnattali também ensaiava, concomitantemente, seus primeiros passos como compositor na área de concerto.

Após atuar nas Rádio Clube do Brasil, Mayrink Veiga e Cajuti, Gnattali entrou, em 1936, como pianista, para a emissora à qual seu nome estaria mais amplamente associado – a Rádio Nacional, onde mais tarde seria também regente, e consolidaria sua reputação como arranjador.

Ele conta: “comecei a fazer pequenas peças para trio, como toadas e choros”. Quando havia “buracos” na programação, o trio era chamado para preencher esses espaços. Sua formação: “eu no piano, Iberê [Gomes Grosso] no violoncelo, e Romeu Ghipsman, violino”.

Radamés ainda não tinha entrado para a Rádio Nacional quando escreveu seu Trio N. 1, mas Iberê e Romeu (diretor artístico da emissora, e responsável por sua contratação por ela) já eram seus parceiros musicais. Ao lado deles, estreou, na Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, em 1934, a obra, posteriormente gravada na Rádio MEC, com uma formação diferente – Alceo Bocchino ao piano, Anselmo Zlatopolsky ao violino e Iberê ao violoncelo. A partitura traz o nacionalismo informado pela música popular urbana tão característico de Radamés, assim como outras duas peças da mesma época que integram o disco: o Conto (lenda n. 2), de 1937, e o Trio Miniatura, de 1940.

Essas são as obras que devem ter inspirado Luiz Heitor Corrêa de Azevedo a afirmar, em 150 anos de música no Brasil (1956), a respeito de Radamés: “A notável facilidade de escrita do compositor, a maestria com que emprega os instrumentos de arco – individualmente ou fundidos no conjunto -, a originalidade dos efeitos que obtém, graças a essa técnica refinada, tornam sua obra, no domínio da música de câmara, particularmente feliz e destinada a colher, como sempre acontece, os mais entusiasmados sufrágios do público”.

Justamente na época em que Luiz Heitor publicava seu clássico estudo sobre a música brasileira, a música de Gnattali sofria uma guinada estética, de acordo com Gerard Béhague: “durante os anos 1950, Gnattali tentou deliberadamente se afastar do nacionalismo musical. Voltou-se para modelos neorromânticos e neoclássicos, enquanto mantinha o estilo inconfundivelmente ligeiro frequentemente associado ao jazz sinfônico”.

Na década seguinte, ele faz turnês internacionais como intérprete, tanto na música popular, com o Sexteto Radamés Gnattali, quanto na erudita, em duo com Iberê, em 1964, apresentando-se em Berlim, Roma, Tel-Aviv e Jerusalém. É uma época em que, sempre de acordo com Béhague, em Music in Latin America: an introduction, a ideia de afastamento do nacionalismo parece ser deixada de lado, já que suas obras “revelam uma maior assimilação das tradições folclóricas e populares”. Essa assimilação se evidencia no Trio N. 2, de 1967, cuja partitura já anuncia, na primeira página: “no estilo popular”. Contemporâneo dos Concertos Cariocas, e compartilhando com eles afinidades estilísticas, o trio durante anos foi desconhecido mesmo dos especialistas no compositor: ele não consta, por exemplo, do catálogo de obras publicado no final de Radamés Gnattali: o eterno experimentador, de Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos, publicado pela Funarte em 1984.

O ano da edição deste livro é também o da composição do último dos trios de Gnattali. Aos 78 anos, ele não dá mostras de cansaço: grava, na Sala Cecília Meireles, um álbum de piano solo, com arranjos de canções de outros músicos, como Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro), Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá e Antônio Maria), Ponteio (Edu Lobo e Capinan) e Chovendo na Roseira (Tom Jobim). Como compositor, no Trio N. 3, de 1984, mostra-se fiel aos mesmos ideais que animaram seu primeiro trio, meio século antes, temperados pela sabedoria de quem é senhor não apenas de suas escolhas, como da técnica para materializá-las."

 

Quem são as mulheres por trás do Trio Puelli?

 

Karin Fernandes é pianista premiada em primeiro lugar em 21 concursos de piano, já se apresentou em todas as regiões brasileiras e também em Portugal, Inglaterra, França, Argentina e Paraguai. Possui 12 CD'S gravados e o 13º CD, inteiro com peças de Heitor Villa Lobos para piano solo, está em fase de produção, com lançamento previsto para 2018. Em sua formação destacam-se cursos com Maria João Pires em Portugal, Bernard Flavigny na França, e Cristina Ortiz na Inglaterra. Em abril de 2017 foi premiada no Prêmio Profissionais da Música como Melhor Instrumentista Erudita de 2016.

Ana de Oliveira graduou-se na classe de Rainer Kussmaul, na Escola Superior de Música em Freiburg (Alemanha), onde viveu por nove anos. Apresentou-se como solista com diversas orquestras no Brasil e na Europa e como camerista em importantes festivais, entre eles Montreux, La Villette, Warschauer Herbst, Donaueschingen, Campos do Jordão, MIMO e Festival Villa-Lobos. No Brasil, desenvolveu uma carreira diversificada e abrangente atuando como spalla da Orquestra Sinfônica Brasileira durante uma década, criando e liderando vários grupos de câmera como primeiro violino, e também exercendo a Coordenação pedagógica do Festival MIMO.

Adriana Holtz deu suas primeiras aulas de violoncelo no Sesc Consolação, em São Paulo e depois no Conservatório de Tatuí. Participou dos festivais de música de Londrina, Curitiba, Campos do Jordão e Tatuí.  Foi primeiro violoncelo da Orquestra Experimental de Repertório, além de integrante da Orquestra Jazz Sinfônica, da Orquestra de Câmara Villa-Lobos, entre outros. Como professora lecionou na Universidade Livre de Música e na Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Atualmente Vem desenvolvendo intenso trabalho camerístico com o violinista Luiz Amato, o grupo Quintal Brasileiro. e o Trio Puelli. Desde 1997 é integrante da OSESP.