Anaí Rosa atraca Geraldo Pereira
Se o samba é o samba como a gente conhece hoje, pode reservar uma fatia deste bolo, ou melhor, um belo gole desta cerveja ao sambista Geraldo Pereira.
Filho de Clementina Teodoro, parteira e rezadeira, vivia na Zona Rural e chegou a trabalhar como candeeiro de boi. Embora há muitas lacunas para o resgate de sua infância, um dado é certo, ele é juiz-forano. Muito embora não tenha deixado rastros de sua história contada, o compositor nunca deixou de mencionar sua cidade natal. Nascido onde o mato parece não ter fim, e levado ao Rio de Janeiro para “onde o morro acaba”, sua biografia imprecisa é costurada a partir de retalhos de história oral.
Boêmio, Geraldo viveu intimamente a malandragem do Rio dos anos 1940 e 50, morreu aos 37 anos numa famosa história envolta em polêmica com o lendário Madame Satã o e deixou uma obra que não envelhece. Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Elza Soares e Monarco estão entre os artistas em atividade que gravaram sambas seus.
O compositor de "Falsa baiana", "Bolinha de papel" e outras joias da música carioca é presença permanente no repertório da nova geração que hoje se empenha em manter viva a chama do samba. Mas, apesar de ser o criador (ou, pelo menos, o mais legítimo representante) de um estilo conhecido como "samba sincopado", suas músicas hoje são mais lembradas que seu nome.
Em 2018, o Selo fecha o ano com uma homenagem ao sambista! Se não tivesse morrido precocemente, neste ano, Geraldo completaria 100 anos. Para rememorar o legado desse ícone do samba, a cantora paulista Anaí Rosa reuniu composições emblemáticas – como “Falsa baiana”, “Escurinha” e “Acertei no milhar” no CD Anaí Rosa atraca Geraldo Pereira. A cantora, de sólida formação erudita, fez carreira interpretando grandes compositores da Música Popular Brasileira, em apresentações que valorizavam os ritmos dançantes. Neste disco, Anaí destaca o compositor que constantemente aparecia em suas apresentações de samba, com músicas bem conhecidas do público nacional.
Reunimos abaixo o texto do poeta Vadim Nikitin que tempera o encarte do disco com um pouco da mística que envolve Geraldo. Na sequência, o single do samba Polícia no Morro. Essa música, feita como uma continuação do samba "Cabritada Mal Sucedida" também presente no álbum, traça um perfil nada lisonjeiro da figura do delegado. Em represália ao furto de um cabrito, o então "comissário" comete um abuso de autoridade: ameaça o desfile da escola de samba.
ATRAQUEM-ME
“Vou atracar”, verso que fecha o samba “Chegou a bonitona”, é uma coda de breque da ginga geniosa de Geraldo Pereira, misto de calango e violão: eis a bonitona, a roda de bambas lhe faz uma quase seresta ao luar, e a musa da noite parece não ter dono. Então o lirismo se destila em malandragem: “Vou atracar”.
Daí Atraca, o título do disco, em torno do qual sambam os nomes da porta-bandeira, Anaí Rosa, e do mestre-sala, Geraldo Pereira. Título que surgiu de um feliz mal-entendido: o fotógrafo Piu Dip e o produtor Guto Ruocco interpretaram luminosamente “Vou atracar” como “Atraca”. Deram a deixa que resolvia a cena.
“Atracar”, verbo marinheiro de origem controversa, é gíria de sambista pirata à deriva. Assediar, chegar junto, colar, zoar, invadir um
navio ou ancorá-lo no porto. Amanda Dafoe e a sua Casaplanta traduzem tudo no parangolé gráfico da capa mangueira-verde-rosa com o A do meio de Atraca, deitado na vertical, boca de Anaí prestes a devorar Geraldo, atracando o mar do seu próprio canto.
Anaí Rosa, loira sarará, pequena notável, Giulietta Masina, sorriso Mona Lisa, cantora de noites de gafieira, salsa, forró e outros orvalhos, transforma-se agora em Geraldo Pereira. E vice-versa. O samba em si, além de si, Anaí.
Voz de ópera, de pluma, de chumbo. As madrugadas da voz.
E vêm o cabrito e a radiopatrulha, o úbere e a urbe sambando na síncopa. Enquanto a lei procura o cabrito, louca para acabar com o carnaval, o bicho já está lá, na carne do pandeiro, desfilando alegria. O coração de Geraldo é um cabrito indomável.
Assim como os corações de Nelson Sargento e Raul de Souza, que cantam junto com a rosa de Anaí. A risada de Sargento é um passe, lua beijando a rede do gol. E o sopro de Raul é tatuar a lua com um palíndromo: luaR. Pereiras lunares.
A banda maestra que aqui toca nesta pérola revela-se a cada faixa uma orquestra incendiária de caixinhas mágicas de fósforos da Praça Tiradentes para o mundo. Os artistas transentendem o que pode ser o samba e o atracam no fundo do céu.
A direção musical: Cacá Machado, que na alma decerto já tomou umas com Geraldo, e Gilberto Monte, que não se aguenta e rege dançando, música em pessoa.
Anaí Rosa molha as suas tantas vozes na voz do morro. O centenário de um sambista como Geraldo Pereira quer dizer a eternidade do samba.
Ela sacode a babel na exata e ao mesmo tempo acalanta. E dispara: “Enquanto eu estiver viva, vou atracar.”
Atraquemos
Vadim Nikitin | Outubro de 2018