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postado em 06/05/2019

Garoto

bellinati garoto head

Em 1981, voltar definitivamente ao Brasil e recomeçar a vida em São Paulo, após 6 anos de estudos no Conservatório de Genebra, na Suíça, não foi uma tarefa fácil. Passava os dias refazendo contatos com velhos amigos, procurando  trabalho, alunos e inventando projetos. Neste momento da minha história descobri um LP importado do Laurindo de Almeida, que incluía três músicas do Garoto: “Gracioso”, “Nosso Choro” e “Tristezas de Um Violão”. Foi apaixonante aprender a tocá-las na versão do Laurindo e fui ficando com a curiosidade de conhecer os originais dessas e de muitas outras. Procurei o Professor Ronoel Simões para saber mais sobre seu querido amigo Aníbal Augusto Sardinha - o Garoto.

Ronoel me explicou que ao ouvir as novas músicas que Garoto vinha lhe mostrar, imediatamente pedia para gravá-las no estúdio da Rua Marconi, centro de São Paulo. Assim, registrou várias delas direto em acetato e levava as peças únicas, discos pesados e quebradiços, para Ronoel, que por segurança, fazia cópias cassete dessas gravações.

Meu estudo dessas versões e de vários manuscritos do acervo do Simões foram os pilares da minha pesquisa. Sem ele, nada disso seria possível.

Tocar Garoto me proporcionou vários encontros com alguns contemporâneos, seus amigos e parceiros com os quais tive a honra de conviver, coletar material, ouvir histórias incríveis e fortalecer o meu trabalho:

Radamés Gnattali, ao visitar sua casa, no Rio de Janeiro, toquei no violão dele e foi emocionante quando me disse “esse violão foi do Garoto”. Também nessa época conheci Rafael Rabello. Ele e Radamés viriam tocar em São Paulo e assisti o duo muitas vezes tocando as músicas do LP Tributo a Garoto lançado pela FUNARTE. Radamés gostava de jantar na Osteria do Piero, nos Jardins, e depois do concerto sempre me pedia: “Paulo, vamos naquela massa maravilhosa aqui de São Paulo”.

Foi também na Sala Guiomar Novaes da FUNARTE que assisti ao lendário Quinteto Radamés Gnattali, com Zeca Assumpção no contrabaixo e os membros do quinteto original - Luciano Perroni na bateria, Chiquinho do Acordeon, Zé Menezes na guitarra e Radamés ao piano, inesquecível! Assisti a todos os concertos, de quarta a domingo, e ainda aparecia no hotel à tarde, para conversar, tocar e estar perto destes músicos incríveis.

Zé Menezes, tocou e conviveu com o Garoto, principalmente na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, onde acompanhavam vários artistas ao vivo. Nesta vinda a São Paulo, com o quinteto de Radamés, tocou pra mim várias do Garoto que aprendera com o próprio. Absorvi muito, perguntei, tirei dúvidas sobre um ou outro acorde, detalhes nas melodias e no jeito de tocar. Menezes tinha uma palhetada incrível no violão tenor e contou que Garoto tinha essa mesma técnica. Entre uma música e outra comentava: “O Garoto gostava de contar piadas para os músicos da nossa orquestra quando chegava na Rádio. Um dia apareceu fumando, fazendo pose com uma piteira muito comprida. Perguntado o porque da novidade ele mandou essa: “meu médico mandou eu manter distância do cigarro”.

Paulinho Nogueira, éramos vizinhos na Rua Homem de Melo, em Perdizes, e sempre nos encontrávamos na fila do Banco Itaú na Rua Cardoso de Almeida. Ficamos muito amigos e até tocamos juntos no Clube do Choro de São Paulo. Além de muitas conversas sobre Garoto, Paulinho me apresentou a pesquisadora Irati Antônio que me cedeu fotos e partituras colhidas durante pesquisa da sua monografia “Garoto-Sinal dos Tempos” (FUNARTE). Uma publicação essencial contendo biografia detalhada, muitas fotos, discografia e musicografia completa do gênio das cordas.

Lauro Paes de Andrade, me foi apresentado pela Irati e foi amigo do Garoto. Seu apartamento no Rio de Janeiro costumava ser ponto de reuniões musicais, conhecido como “Catedral do Samba”. Frequentada por vários artistas como Dolores Duran, Luís Bonfá, Billy Blanco, Silvia Teles, além de Garoto, esses encontros foram gravados em um gravador geloso, aparelho sofisticadíssimo na época. Lauro me presenteou com essas fitas originais contendo preciosidades de Garoto bem à vontade, tocando solo, ou acompanhando artistas, como Silvinha, os tapes foram todos digitalizados. Um tesouro que guardo com muita gratidão.

 

Miécio Caffé, também me foi apresentado pela Irati. Famoso pelas caricaturas que produzia de grandes nomes, artistas, futebolistas, personalidades ilustres do Brasil e pela incrível coleção de 78 rotações. É dele o desenho de Garoto na capa do meu LP original. Igualmente importante nesta minha imersão, são as gravações de Garoto extraídas dessa coleção.

Badeco, do famoso conjunto vocal Os Cariocas - dividiu apartamento com Garoto no Rio de Janeiro, me passou a letra original de Gente Humilde e de Meditação, que ainda permanecem inéditas. Ao violão, me tocou trechos da também inédita “Inquietação” que aprendera com Garoto.  

Milton Nunes, colega de Garoto quando ambos estudavam com o Professor Attílio Bernardini em Campinas. Me transferiu, com dedicatória, o manuscrito original de À Caminho dos Estados Unidos.

Pedro Quintão, casado com a irmã do médium Chico Xavier, me confidenciou que Garoto e Radamés iam juntos para Belo Horizonte consultar com o médium, e nessas idas, Pedro organizava almoços e saraus. Além de gravações feitas em sua casa, onde estavam as únicas versões instrumentais de Gente Humilde e Carioquinha, me passou o manuscrito original da composição O Tutú do Pedro, um choro ainda inédito em gravações.

Mario Albanese, foi amigo e parceiro de Garoto. Assina a letra de Amor, Indiferença, que é a peça Jorge do Fusa para violão solo, rebatizada. Com Ciro Pereira criaram o Jequibau, uma espécie de samba em 5 tempos. Conheci o Mario no final dos anos 60, época que apresentava o programa O Assunto é Violão na rádio Nacional em São Paulo. Sempre que podia, ia assistir este programa ao vivo e conheci muitos músicos lá: Toquinho, Paulinho Nogueira, Macumbinha, Silvio Santisteban... 
  
No final de 1984 decidi gravar este disco e consegui registrar todas as 11 faixas graças à generosidade e ao entusiasmo dos meus queridos amigos e parceiros, o pianista, compositor Lelo Nazário, que fez a produção de estúdio, e o especialíssimo técnico de som Hugo Gama, disponibilizando seu estúdio Timbre.

O LP Garoto foi lançado e distribuido em 1986 pelo importante selo Marcus Pereira, neste momento reativado pela gravadora Copacabana.

Outros encontros importantes aconteceram depois do lançamento do LP. Muitos amigos e familiares do Garoto me ofereceram espontaneamente, manuscritos importantes, fotos e depoimentos que enriqueceram a sequência do meu trabalho.

Quando Dean Kamei (presidente da Guitar Solo Publications-GSP) ouviu este LP na casa do Ronoel Simões, em 1988, quis marcar um encontro comigo urgentemente. Foi por um triz, pois no dia seguinte eu sairia em tournée pela Europa com o Pau Brasil e, ao mesmo tempo, o Dean regressava aos Estados Unidos. Ele estava no Brasil para contatar vários editores brasileiros, arranjadores e compositores violonistas. 

A editora GSP, que ainda não era gravadora, estava preparando um grande projeto; a publicação de álbuns de partituras para violão, intitulados The Great Guitarists of Brazil - onde cada edição seria dedicada a um grande violonista-compositor: Luiz Bonfá, Dilermando Reis, João Pernambuco, Baden Powell, Paulinho Nogueira, Laurindo de Almeida e Garoto. 

Imediatamente, fui encontrá-lo levando meus manuscritos com as transcrições dos meus arranjos. Neste mesmo dia, assinei contrato com Kamei para a publicação dos álbuns The Guitar Works of Garoto, que foram impressos em dois volumes, com 24 composições para violão solo.

O lançamento dessas partituras, em 1990, foi um acontecimento impactante para o repertório do instrumento. A música de Garoto, a partir daí, distribuída em lojas especializadas em todo mundo, começava a ser tocada e gravada por grandes solistas internacionais.

No mesmo ano, a gravadora GSP RECORDINGS foi inaugurada e fui convidado para gravar o CD The Guitar Works of Garoto, com todas as 24 peças, completando meu trabalho.

Esse kit (partituras e CD), além de colocar o Garoto no panorama internacional, como um dos mais importantes compositores do Brasil, retomou minha carreira de solista expressivamente. As solicitações de concertos, palestras e entrevistas pelo mundo foram tantas que tive que deixar o grupo Pau Brasil temporariamente, entre 1992 e 2002.

A crítica especializada se refere ao lançamento como uma das mais importantes descobertas do repertório original para violão, equiparando-a com a do grande violonista paraguaio Augustin Barrios.

O projeto foi matéria de capa da inglesa Classical Guitar Magazine, uma das mais respeitadas revistas de violão do mundo, e destaque em varias publicações como Guendai Guitar no  Japão, Les Cahiers de La Guitare na França, e várias nos Estados Unidos como Soundboard, Guitar Player, e Guitar Review, onde além das matérias e entrevistas, recebeu muitos 5 stars na sessão de lançamentos de CDs. 
 
Com o sucesso do The Guitar Works of  Garoto, gravei para a GSP mais 4 CDs, todos dedicados exclusivamente ao violão brasileiro: Serenata-Choros & Waltzes of Brazil (1993), Lira Brasileira (completamente autoral - 1996), Afro-sambas (com Mônica Salmaso-1997) e A Felicidade (solo-1998). Em seguida a editora começou a publicar minhas composições, que também começaram a ser gravadas e tocadas pelo mundo. Um exemplo é minha peça Jongo que já conta com uma centena de gravações, inclusive uma feita pelo grande violonista John Williams.

Estas conquistas foram, com certeza, uma honra na minha história de vida, e tudo começou com a gravação deste LP que considero um marco na minha carreira. Uma felicidade imensa ter este novo lançamento do meu primeiro disco Garoto, digitalizado e remasterizado com perfeição por Lelo Nazário. 


Viva Garoto!


Paulo Bellinati
 

01. Gente Humilde

02. Gracioso

03. Um rosto de mulher

04. Sinal dos tempos

05. Meditação

06. Tristezas de um violão (Choro Triste nº 1)

07. Enigma

08. Choro triste nº 2

09. Esperança

10. Lamentos do morro

11. Naqueles velhos tempos

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