Tetê Espíndola e Alzira E - Recuerdos
Recuerdos do passado, do presente e do futuro
Era uma vez um movimento vanguardista elaborado por um grupo de artistas vindos dos interiores do Brasil. Cosmopolita por excelência, a chamada vanguarda paulista reunia em sua espinha dorsal, apenas para ficar em poucos exemplos, gente como o paranaense de Londrina Arrigo Barnabé, o paulista de Tietê Itamar Assumpção e as sul-matogrossenses de Campo Grande Tetê Espíndola e Alzira E. Para além da febre do mais metropolitano experimentalismo, os anos correram no leito dos rios, e as irmãs Tetê e Alzira puderam volta e meia mergulhar nas próprias origens, ora revisitando cancioneiro brasileiro profundo, ora humanizando sons da natureza selvagem, ora reelaborando a música fronteiriça que moldou gerações da família Espíndola, na aventura de palco Anahí, editada em CD ao vivo de 1998 pela dupla feminina não-caipira. Recuerdos evoca os 20 anos de Anahí, bordado de canções simples de que gostava a mãe de Tetê e Alzira, dona Alba. Mas avança ainda mais para dentro (e para fora), não apenas pela participação maiúscula, em cinco faixas, do conterrâneo Ney Matogrosso, sul-matogrossense fronteiriço de Bela Vista e vanguardista à sua própria maneira.
Recuerdos extravasa as águas que já correram e mergulha nas profundezas, porque agrupa e reposiciona os polos extremos frequentados pelas irmãs nos trabalhos individuais, bem como os inúmeros, infinitos meios de caminho, outros lugares e cortes experimentais habitados por elas com a paixão com que os bebês se aninham no mar uterino materno. O nome castelhano evoca a lembrança e as fronteiras da América Latina (Paraguai, Bolívia, Argentina, Venezuela, Uruguai, México, Cuba), e assim o faz repertório que abraça amorosamente os paulistas interioranos Cascatinha e Inhana - pela fibra originalmente paraguaia de "Meu Primeiro Amor (Lejania)", "Anahí (Leyenda de la Flor del Ceibo)", "Índia" e "Recuerdo de Ypacaraí" (a única faixa efetivamente cantada em espanhol, com Ney à frente).
Memórias à parte, Recuerdos floresce feito lírio selvagem no asfalto megalopolitano e extrapola o olhar para o passado, pelo trabalho em quarteto (de cordas, sopros, teclas, aços, metais, gargantas) entre Tetê e Alzira, o diretor artístico Arnaldo Black, paulista da capital, e o arranjador Zé Godoy, interiorano de Bragança Paulista que, um pouco mais moço que os demais, confere um aspecto também transgeracional ao trabalho.
Porque os recuerdos também são feitos de presente e de futuro. "Rio Vermelho" soma o Goiás velho e profundo de Cora Coralina, em versos musicados por Alzira. Cachoeiras na garganta, Tetê verte as "Águas Irreais" dela e de Arnaldo em enchente de vanguarda paulista. Um mítico Mato Grosso (pré-divisão entre norte e sul) projeta os ramos ancestrais de "A Matogrossense", "Pé de Cedro" e "Siriema", as ramas modernas do "Trem do Pantanal" e da espindoliana "Raça das Matas", do irmão Geraldo Espíndola.
Recuerdos é cinematográfico. Nos arranjos que transportam para outros lugares e tempos canções muito conhecidas, alternam-se referências a polcas, guarânias, boleros, blues e polcas-rocks; a tangos argentinos e boleros mexicanos; à América portuguesa e à espanhola; à África, ao tupi e ao guarani transbrasileiros, ao candombe uruguaio e aos ritmos afrocubanos; à cosmópole e ao matão, à Lira Paulistana, às grutas e às locas; às sinfonias eruditas e às orquestras popularíssimas de bailão do Centro-Oeste… Recuerdos é síntese, simultaneamente ontem, hoje e amanhã.
Pedro Alexandre Sanches, jornalista e crítico musical em São Paulo, mas nascido paranaense de Maringá