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postado em 23/08/2019

Cristovão Bastos e Maury Buchala - Espelho

espelho capa portal

Como quem se mira no espelho, mas em franca conversa ao piano filmada por Nelson Pereira dos Santos nos anos 80 do século passado, Radamés Gnattali lamentava-se com Tom Jobim de que não conseguira realizar seu sonho de juventude, ir para Europa estudar música e ser concertista de piano: “Eu tinha que trabalhar para viver, fazer arranjo, rádio, estúdio...”.

Tom, igualmente como se diante do espelho, minimizava o sofrimento de seu mestre, agigantando-o. “Mas Radamés, que bom que você não foi, que ficou aqui, e fez essa musica linda, essa obra maravilhosa...”.

Ambos, gênios fundamentadores do que hoje chamamos de moderna música brasileira (sem a sempre confusa qualificação de “popular” ou “erudita”), ao olharem-se no espelho poderiam se deparar com o também compositor de piano Pestana, o famoso personagem de Machado de Assis do conto “O homem célebre”, que se ambicionava  um Mozart mas era simplesmente, e para sua íntima desgraça, o maior autor de polcas buliçosas do império brasileiro: “Compunha só, teclando ou escrevendo (...), sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene”.

Como herdeiros de Radamés e Tom, Cristóvão Bastos e Maury Buchala convivem com o mesmo dilema – o desejo de uma criação musical pura e a realidade da música profissional – mas cada um a seu jeito o superou. Ao mirarem-se no espelho neste “Espelho”, o que veem é algo preciso, ainda que pareça difuso, a julgar pela carreira e historia de vida de cada um: dois inspirados compositores de canções brasileiras, pianistas e arranjadores. Como Pestana, Radamés, Tom.

Maury Buchala de certa forma realizou o sonho de Radamés: ao fim da faculdade de música da USP conseguiu uma bolsa para estudar composição e regência em Paris por dois anos. Já está por lá há 30 e tornou-se importante compositor e regente de música clássica contemporânea, dedicado a pesquisas de novas texturas, novos procedimentos e sons, formações orquestrais variadas, música pura e abstrata, mas sem nunca deixar de compor canções. (Mas é aí que o espelho começa a se fragmentar, na verdade, nascido em 1967, educado musicalmente em conservatórios do interior de São Paulo na época de ouro da MPB, o sonho de Maury era ir para o Rio ser arranjador de música popular, como Radamés, como Cristóvão Bastos...).

Cristóvão, criado no subúrbio carioca de Marechal Hermes, estudou música clássica desde criança e se recorda de ser reprimido – e de se rebelar – por um professor de piano na escola católica, insatisfeito com seus arroubos criativos, mas avançados, e muitas vezes fora dos procedimentos clássicos. Tornou-se, com sua sólida formação (e rebeldia), um dos mais importantes arranjadores da música popular brasileira, pianista virtuose de estilo pessoal e um prolífico compositor de canções de sucesso como “Todo sentimento”, “Resposta ao tempo” e até o estranho lundu ternário “Tua cantiga”, em parceria com Chico Buarque, e que Pestana, sei lá, acho que assinaria.

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Em 2010, Maury foi ao festival de Ourinhos, no interior de São Paulo, encontrar um regente, quando andando pelos corredores ouviu atrás de uma porta o som de um piano com harmonizações inusitadas, improvisos criativos e diferentes. Abriu a porta e era Cristóvão em uma de suas oficinas de música. Conheceram-se, trocaram ideias e músicas e era como se mirassem no espelho, um espelho todo fragmentado com pedaços da história da canção brasileira de compositores pianistas. Nasceu o desejo de fazer algo juntos, o que resulta agora neste imenso “Espelho”, não propriamente uma parceria, mas o espelhamento dos pianos, dos arranjos e das canções de um e de outro, bem “brasileiras” nos ritmos e inspirações, camerísticas na forma, mas que se unem nos músicos sempre os mesmos e nos cantores solistas – não por acaso cantores populares de vozes perfeitas e educadas: Áurea Martins, Leila Pinheiro, Mariana Baltar e Renato Braz.

O espírito que paira neste trabalho inusitado, e de certa forma também um outro espelho de “Espelho”, é o de Tom Jobim e sua linha de canções camerísticas, como nos LPs “Canção do amor demais” (tendo a “popular” Eliseth Cardoso como solista) e “Por toda minha vida” (com a “lírica” Lenita Bruno como cantora). 

A valsa “Luciana”, de Maury, é o elo natural com o universo jobiniano, já que é homônima de uma valsa de Tom e Vinicius, mas ganha contornos próprios com suas alterações rítmicas, virando quase uma “falsa” valsa, não fosse escrita por um inquieto compositor de música contemporânea. Cantada por Leila Pinheiro, e localizada no miolo do disco, ela é “espelhada” com a composição de Cristóvão “Poranduba”, também ligada ao universo das canções de Jobim só que da linha “ecológica” (com diversas e sutis citações a esse universo, do desenho do violoncelo aos sopros no final) e cantada por Leila. Vindo de extremos teoricamente opostos, os dois compositores (e arranjadores) se encontram a ponto de, aí, um ver o outro no espelho.

As canções de Maury, contudo, guardam de forma muito evidente sua origem na música contemporânea. “Imagens”, uma valsa francesa ambientada aliás em Paris, talvez seja o melhor exemplo de síntese dos universos popular e clássico, com suas dissonâncias, sua forma desconstruída, o arranjo do quarteto de cordas e até algo de free jazz na execução do baixo e da bateria. Também cantado por Renato Braz, o “Baião” é cheio de sutilezas, chega a lembrar Villa-Lobos no uso de temas populares infantis e na segunda parte mais dramática, mas tem procedimentos típicos da música contemporânea, como as mudanças de arcos nas cordas. Já a pureza e a precisão do canto – popular – de Mariana Baltar reforçam a fluência e o caráter lúdico de peças como “Carrosséis” e “Choreando”, que nem por isso renegam sua origem, escritas por um compositor que parte de uma matriz “erudita”, sobretudo na escrita do arranjo e na execução do piano.

Cristóvão vem no caminho oposto, traz sua forma “popular” de compor para o universo camerístico proposto pelo disco. Como as de Maury, suas composições partem de gêneros populares, mas são apresentadas também nesse formato. “Virou ciranda” e “A voz do samba”, ambas com letras de seu parceiro mais novo, Roberto Didio, são verdadeiros tratados em música e poesia sobre os gêneros que abordam, chegam ao sublime simbolizadas pela excelência vocal de suas intérpretes, Leila Pinheiro e Áurea Martins, que também interpreta “Rede branca”, canção grandiosa feita por Cristóvão com seu mais constante e antigo parceiro, Paulo César Pinheiro.

Do universo caipira, com direito à viola de João Lyra, “Santo forte” encontra a precisão clássica do canto de Renato Braz que, como aliás “Poranduba”, tem surpreendente letra de Roque Ferreira, imenso compositor do Recôncavo Baiano muito mais conhecido por seus sambas e sambas-de-roda do que pelas letras “eruditas” feitas para as canções de Cristóvão, num procedimento tão afeito a este disco.

Denso como peças eruditas, fluente como canções populares, neste “Espelho”, quando Cristóvão e Maury se olham eles não veem apenas um ao outro, veem uma coisa chamada canção brasileira, fonte perene, pura vida, graça, novidade escorrendo da alma dos compositores, como queriam Radamés e Tom. E o Pestana, do Machado, sonhava sem saber.

Hugo Sukman
Jornalista

 

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