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postado em 10/09/2019

André Mehmari - Música para Cordas

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Irineu Franco Perpétuo nos apresenta Música Para Cordas de André Mehmari, álbum duplo que condensa a produção para cordas de um dos compositores mais instigantes da atual música nacional.

Ouça agora Música para Cordas

André Mehmari - Música para Cordas

Trazendo a fina flor dos músicos de cordas de São Paulo, capitaneados pelo spalla da Osesp, o violinista e regente Emmanuele Baldini, e contando com solistas profundamente familiarizados com a linguagem do compositor, esse álbum é uma privilegiada jornada pela produção de uma das mais estimulantes mentes criativas brasileiras de todos os tempos: a de André Mehmari. Se já se tornou quase um clichê dizer que Mehmari transcende as fronteiras entre o popular e o erudito, não deixa de surpreender a desenvoltura com que se move pelas diversas províncias desses dois países tão vastos. Da Renascença ao contemporâneo, do choro ao jazz, não parece haver idioma musical que ele não seja capaz de compreender e falar sem sotaque, incorporando-os e amalgamando-os em uma linguagem bastante pessoal que, não por acaso, faz dele um de nossos compositores mais requisitados do terceiro milênio. Orquestras e intérpretes brasileiros de ponta vêm requisitando obras a Mehmari, como este CD documenta de forma eloquente.
Artesão meticuloso, Mehmari ainda construiu o Estúdio Monteverdi, onde elas foram gravadas, e fez toda a engenharia de som do álbum. Ou seja: compôs as obras e produziu seu registro no espaço que ele mesmo idealizou – desde a acústica até os microfones empregados.


Gravado em um estúdio cujo nome homenageia o compositor italiano Claudio Monteverdi (1567-1643), o disco abre justamente com uma obra que faz referência direta a este gênio do madrigal e da ópera. Ballo nasceu em 2009, como encomenda da São Paulo Companhia de Dança. Estreado em 2009, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, com coreografia de Ricardo Scheir, e encenação de Márcio Aurélio, o balé de 34 minutos de duração levou ao palco 31 bailarinos. A inspiração foi Il Ballo delle Ingrate (Baile das Ingratas), bailado semi-dramático de Monteverdi com libreto de Ottavio Rinuccini (1563-1621), que faz parte do Oitavo Livro de Madrigais (Madrigais Guerreiros e Amorosos, 1638) do compositor cremonês, e conta a história da insatisfação de Vênus e Cupido com as mulheres de Mântua (as ingratas do título), que desprezam seus amantes. O que ouvimos no disco não é a música do balé na íntegra, mas uma suíte.


“Parto de uma dança ancestral de Monteverdi, Il Ballo delle Ingrate, que contém algumas polêmicas na própria escrita, de choques de segunda menor, que eu acho especialmente interessantes”, conta Mehmari. “É como se Monteverdi fosse o mestre de danças, o mestre de baile, e convidasse uma série de outras músicas, de outras estéticas a bailar com ele. A gente tem um leque de danças, de estéticas, mas todas profundamente vinculadas à dança inicial do Monteverdi”, descreve.
Da Itália renascentista, pulamos para a União Soviética, e um compositor russo do século XX – evidenciando a pluralidade de gostos e influências de Mehmari. Obra mais antiga do CD, Schostakovitchiana é datada de 2006, quando André, com 29 anos de idade, recebeu uma encomenda da Orquestra de Câmara do Amazonas (OCA), regida por Marcelo de Jesus – que tocou a parte de cravo na estreia da obra. O foco, aqui, é Dmítri Schostakóvitch (1906-1975) e, em especial, o mais célebre de seus quartetos de cordas, o de No 8, composto entre 12 e 14 de julho de 1960, na cidade alemã de Dresden, sob o impacto da visita às ruínas dos bombardeios da II Guerra Mundial.


Mehmari deu à obra o subtítulo de Memorial para Dmitri Schostakóvitch e homenagem às vítimas da ditadura militar no Brasil. A ligação é feita porque o compositor russo dedicou seu Oitavo Quarteto às vítimas do fascismo e da guerra. “É uma obra em quatro movimentos: o Prelúdio, a Fuga – extraídos dos 24 Prelúdios e Fugas de Schostakóvitch, e orquestrados e arranjados por mim –, a Sarabanda Russa, um livre devaneio, e o DSCHChoro”, afirma o compositor. Em várias de suas composições (no Quarteto No 8 em especial), Schostakóvitch emprega um tema musical que tem as iniciais de seu nome: DSCH, que, na notação alemã, corresponde às notas ré, mi bemol, dó e si. “DSCHChoro parte do tema clássico com as iniciais de Schostakóvitch, e lança mão desse gestual do choro, um choro que tem perfume de Radamés – uma homenagem a Gnattali e a esses criadores que borram o limite do popular e do erudito no Brasil, com toda a elegância e naturalidade, sem precisar fazer força para isso. A obra termina com uma citação textual do oitavo quarteto – um solo de violino divinamente tocado por Emmanuele Baldini”, arremata Mehmari.


Um dos fatores que comprovam a profunda inserção de André Mehmari na vida musical de todo o país é a pluralidade de encomendas que ele recebeu em sua carreira – vindas de diversos pontos do território nacional, e sem se limitar ao Sudeste, em que ele nasceu, formou-se e reside. Assim, depois de uma obra escrita para São Paulo, e outra para o Amazonas, o primeiro CD deste álbum duplo conclui com uma partitura criada em 2015, para a Orquestra do Estado do Mato Grosso, do maestro Leandro Carvalho, tendo como solista o italiano Gianluca Littera.


Trata-se da Música para Harmônica e Cordas. Instrumento ouvido muito raramente nas salas de concerto, a harmônica (popularmente conhecida como gaita) tem, contudo, uma importante obra brasileira em seu repertório: o Concerto para Harmônica que Heitor Villa-Lobos (1887-1959) escreveu em 1955 para o norte-americano John Sebastian (1914-1980). A presença, nesta gravação, do renomado gaitista brasileiro José Staneck – que tem na obra de Villa-Lobos seu cavalo de batalha – reforça a linha de continuidade entre a criação de Mehmari e o soberano compositor brasileiro do século XX. Empregando o jogo lúdico de citações que constitui sua poética, André convida para essa linha evolutiva um terceiro compositor: o pianista e pianeiro Ernesto Nazareth (1863-1934), cuja obra ele vem estudando e interpretando com afinco e apreço.


O segundo álbum abre com Strambotti, para clarinete, acordeom e cordas, de 2009 – peça encomendada para o concerto oficial de abertura de Suono Italia, exposição de instrumentos musicais italianos em São Paulo. Mehmari volta, assim, ao universo do Norte da Península, dialogando, dessa vez, com as celebérrimas As Quatro Estações, do barroco veneziano Antonio Vivaldi (1678-1741).
“Estrambote é o termo que designa em literatura uma extensão, cauda ou apêndice do soneto clássico de catorze versos. Strambotto é uma forma poética surgida na Sicília, por volta do século XII, caracterizada por uma única estrofe de oito versos em rimas alternadas. Os Strambotti, geralmente improvisados, tratavam de temas amorosos, religiosos mas também humorísticos e satíricos. Diz-se que o Strambotto, presente em toda a Italia medieval, com as naturais variações regionais, é o pai do soneto petrarquiano, levado da Itália para Portugal por Sá Miranda e eternizado em nossa língua por Camões”, explica o compositor.


“O Estrambote su le stagioni, portanto, é estruturado em cima dos dois primeiros movimentos do Outono de Vivaldi, mas também incorporando referências ao primeiro movimento do Inverno e à música de Heitor Villa-Lobos (Bachianas Brasileiras)”, descreve. “Os intrumentos solistas soam aqui com o estrambote literário: extensões e reverberações das vozes originais, expandindo o discurso harmônico original, descrito por Vivaldi como Ubriachi Dormienti, ou bêbados que dormem”.


“Como um curto respiro intermediário, Alla Siciliana é um Estrambote sem palavras que transporta a célula rítmica básica caracterizante do alla siciliana (6/8) para nosso 2/4. Esse deslocamento cria naturalmente ritmos que remetem ao baião ou marcha-rancho”, conta. “O terceiro e último Estrambote é uma série de variações sobre um tema inexistente, explorando diferentes affetti.
Há também menção ao movimento intermediário do Verão (Il Pianto del Villanello), onde escuta-se o diálogo de acordeom e clarinete, como dois poetas que improvisadamente, de repente, cantam seu Strambotto”, conclui o autor. Na estreia da obra, como nesta gravação, o clarinetista é o italiano Gabriele Mirabassi, com o qual Mehmari vem entabulando um rico diálogo criativo, incluindo performances e gravações em ambos os lados do Atlântico. Já o acordeonista – igualmente na estreia e no disco – é o também italiano Christian Riganelli.


Outro virutose dos sopros com o qual Mehmari tem uma relação artística bastante rica é o fagotista Fabio Cury, que encomendou a ele uma obra contemporânea do Strambotti: o Concerto para fagote, cordas e harpa.


“Composto em três movimentos, em janeiro de 2009, o concerto apresenta um vasto gestual fagotístico, percorrendo a tessitura do instrumento e explorando seus recursos expressivos”, diz o compositor. “Em Burleske, o caráter giocoso e bem humorado é predominante. A vivacidade rítmica das cordas emoldura as peripécias do solista, que oscila entre rápidas escalas e saltos. Lamento traz o lirismo pungente do registro agudo do fagote, numa quase toada barroca. Fagote, Pacote é o movimento mais desafiador tecnicamente, para solista e orquestra. Violinos se tornam cavaquinhos estilizados para materializar esse divertido fagode sinfônico”, explica Mehmari. De onde teria vindo um nome tão inusitado para esse movimento? “Conta-se que, um belo dia, a professora questionou qual era a profissão do pai do aluno-mirim, que respondeu: 'meu pai toca fagote, fessora'. Esta prontamente corrigiu o menino: 'olhe, não é fagote. É pa-go-de!'”


Por fim, o Concerto para Jazz Trio e Cordas marca um momento fundamental na recepção da obra de Mehmari: por encomenda de John Neschling, em 2008, a Sala São Paulo abrigou uma apresentação constituída exclusivamente de obras do compositor, do qual este concerto era o destaque.


“É uma peça difícil. Tecnicamente, trabalha com uma métrica pouco usual, com muitos compassos de sete, onze”, enumera. No desafio de levar a linguagem de seu trio par a música orquestral, Mehmari preocupou-se com a coesão da arquitetura da peça, da qual tem especial orgulho: “Trata-se de uma obra construída inteiramente em cima do pedal de lá bemol. O pedal está ali como um norte, e muitas vezes a ausência fala mais sobre ele do que a própria presença”.


Monteverdi faz-se novamente presente. “O segundo movimento é um adágio barroco-blues, é um Monteverdi blues, que remete muito à minha paixão pela música da Renascença tardia, de Monteverdi, Byrd, Gibbons, Frescobaldi. Porém numa linguagem em que um trio de jazz possa tocar. Eu acredito que, embora tenha sido escrito para o meu trio, qualquer trio de jazz do mundo pode tocar essa obra. Cada trio tem a sua linguagem, mas existe algo de universal na escrita de um trio de jazz, e também na escrita para cordas”.

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