Estradar
Fica difícil explicar a música do compositor baiano Elomar Figueira Mello desgarrada de seu contexto geográfico. Nascido na semiárida Vitória da Conquista, em 1954 ele muda-se para a capital Salvador para estudar e compõe algumas canções. Cinco anos mais tarde, ingressa no curso de arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), conclui o curso em 1964 e retorna à Vitória; vive da arquitetura, e paralelamente mantém uma carreira como artista. Este preâmbulo, com poucas linhas de sua biografia, ajuda a destrinchar o início de sua trajetória que se embaralhou por inúmeras vertentes, mas permaneceu fielmente plantada na paisagem do sertão. Trata-se de um compositor cuja formação cultural e musical advém de seus vínculos com múltiplas experiências e tradições musicais, tanto regional e rural, que o colocam numa encruzilhada de onde partem e convergem inúmeros caminhos e alternativas.
Segundo Gilson Rodrigues Bomfim, pesquisador da Fundação Casa dos Carneiros e amigo de Elomar “nós denominamos sertão toda região que está distante do litoral” e dentro daquilo que se convenciona a chamar assim, ainda podemos ramificá-lo entre sertões: político, geográfico e existencial. Falar de Elomar é falar sobretudo desse último, o sertão existencial, cuja obra de sua autoria o faz transcender os limites territoriais e atravessar o tempo.
É com essa aura que nasce Estradar, novo álbum lançado pelo Selo, solidificando a parceria entre a cantora Verlucia Nogueira e o pianista Tiago Fusco. Juntos desde 2012, quando se conheceram em um curso de música, em São Paulo, Verlucia e Tiago logo transformaram a afinidade pelas melodias em realização profissional. Entre ensaios e experiências, a dupla interpretou brasilidades distintas até decidirem pelas cantigas populares do cantor e compositor baiano.
Ouça agora Estradar
Verlucia Nogueira & Tiago Fusco - Estradar
A fim de ecoar as estradas e belezas de um sertão profundo, eles tiveram a direção artística do filho e parceiro de Elomar, o violinista João Omar. O mergulho pelo cancioneiro e da prosódia roçaliana, fizeram de Estradar uma obra, a qual não descaracteriza o processo criativo original, pelo contrário, oferece uma nova interpretação ao vocabulário catingueiro.
Para apresentá-lo, recorremos ao texto do compositor e pesquisador Lincoln Antonio e a um pequeno glossário que explica termos desse dialeto catingueiro. Essa linguagem aliás, uma das maiores virtudes de Elomar, foi muito bem explorada na série de vídeos da Ocupação Elomar, promovida em 2015 pelo Itaú Cultural [que você assiste abaixo].
O duo apresenta o repertório de Estradar em apresentação única no dia 31 de outubro, às 20h30, no auditório do Sesc Vila Mariana.
“Ó, que caminho tão longo
Tão cheio de pedra e areia
Valei-me meu Padre Cícero
E a Mãe de Deus das Candeias”
Bendito de Nossa Senhora das Candeias
Peço licença, senhoras e senhores! Lá vem uma parelha muito bem emparelhada. Mililégua a caminhar por estradas de pedra, areia, esperança e saudade. Grandes amores, grandes desastres. A história e a utopia de um país chamado Sertão. A canção, que já não é mais popular nem erudita, alargada em suas possibilidades dramáticas, narrativas e líricas. Inda mais, muito mais. Música épica.
A peleja é fina, precisa e claríssima. São três caminhos que se cruzam e é na encruzilhada que se fazem os trabalhos, se abrem as possibilidades e se confiam caminhos. Aqui os caminhos vêm todos do interior e se cruzam “naquela galáxia em vias de explosão”, São Paulo. Verlucia vem de Juazeiro do Norte, Cariri cearense. Tiago vem de Leme, inteiror paulista. E Elomar, ainda que baiano, da grande e velha pátria do Sertão.
Entre a canção e a ária, entre o recitado e o galopado, entre a balada e o madrigal, as peças vocais de Elomar estão sempre coladas ao violão, como um organismo só. Poeta-compositor-intérprete, trovador, cantador. O espaço-tempo de Elomar é um Sertão atemporal, “uma ficção de coisas que já existiam, que existem e que ainda vão existir”, como disse certa vez.
Pois nesse CD o piano é quem emparelha com a voz para juntos realizarem uma fascinante viagem camerística pelo cancioneiro de Elomar. Canções de amor, lamentos de retirantes, histórias de vaqueiros, festas, bençãos, lugares perdidos. Verlucia e Tiago trazem muita clareza às músicas no cuidado intenso com a articulação, na escolha dos andamentos, na cor das palavras. A voz firme e natural de Verlucia se alia ao piano nítido e preciso de Tiago para juntos construírem novas interpretações, novos diálogos com a obra catingueira de Elomar. Ampliando trechos instrumentais num jogo constante entre o claro e o escuro, a dupla explora as várias possibilidades da formação voz e piano e realiza uma experiência inédita com a obra desse compositor.
Se por um lado a presença do piano nos distancia da estética “sertaneza” de Elomar, por outro abre várias possibilidades de recriação de sua obra, especialmente no ambiente da canção de câmara, e colabora com o projeto elomariano de expandir suas criações nas formas da música dita “culta”, como ele mesmo atribui à sua obra.
Apois, este Estradar é um grande acontecimento que reúne a obra de um compositor único, defendida por uma dupla de grandes intérpretes e escreve mais um capítulo da história da canção brasileira e, por que não, da canção universal.