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postado em 19/12/2019

Tia Amélia para Sempre

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Quando conheci o Hercules Gomes, imediatamente percebi que estava diante de um pianista com um estilo único, como talvez nunca tenha existido no Brasil. Seu som me fazia lembrar o dos grandes “pianeiros” do passado, como Ernesto Nazareth, Tia Amélia, Maestro Gaó, Nonô, Carolina Cardoso de Menezes, e mais recentemente Laércio de Freitas. E seus dedos esticados sempre me lembraram os de Vladimir Horowitz, somando-se uma técnica de pulso solto, que depois compreendi vir de seus anos de estudo com Silvio Baroni, discípulo de Pietro Maranca.

Diferentemente do que estamos acostumados a entender por “piano popular” nos últimos 70 anos, Hercules utiliza um outro jeito de se tocar, trabalhando bastante a mão esquerda, com saltos, acordes, sextas, linhas do baixo, enquanto a mão direita, ao desenhar as complexas melodias do choro, se esbalda nos contratempos da música, trazendo uma imensa riqueza rítmica, e transformando o piano numa verdadeira orquestra de baile. Era exatamente assim que os “pianeiros” tocavam no início do século, com imenso virtuosismo e criatividade. Se inicialmente este termo era utilizado para designar aqueles que tocavam de ouvido, sem a técnica dos conservatórios, depois percebeu-se que eles eram mestres absolutos em seu instrumento, e com os quais havia muito a se aprender.

E Amélia Brandão Nery (1897-1983) foi a grande estrela deste universo pianístico brasileiro. Nascida em Jaboatão (PE), tocava de ouvido desde os quatro anos, vindo a compor sua primeira música aos 12. Aos 25, passou a dedicar-se à música profissionalmente, e nesta época conheceu Ernesto Nazareth no Rio de Janeiro, que, ao ouvi-la tocar, ficou encantado e falou “quando eu morrer, você continue no choro, não deixe o choro morrer”, frase que ela conservou sempre em sua vida. Curiosamente, resolveu encerrar sua carreira por volta de 1939, porém, quase 20 anos depois, reinventou-se como “Tia Amélia”, apresentando-se com grande sucesso em rádios e na televisão. Seu programa “Velhas estampas” na TV Rio marcou época, e ainda hoje há pessoas que se lembram daquela senhora tocando valsas e choros sempre com um sorriso no rosto. Os baixos que Tia Amélia fazia com sua mão esquerda são um capítulo à parte, em que ela imita um violão 7 cordas em moto perpetuo, o que traz grandes dificuldades técnicas para a música. Talvez não por acaso, o grande crítico de música Eurico Nogueira França, quando a ouviu em um sarau na casa de Jacob do Bandolim, enxergou na pianista uma “predileção por Liszt”. Seu legado tem sido apreciado por colecionadores e pesquisadores – foram mais de 60 faixas gravadas por ela ao longo de 30 anos, em discos 78-RPMs e LPs – porém agora, finalmente, temos uma releitura moderna de suas obras neste precioso disco contendo suas músicas no piano solo, mas também no formato piano + regional e piano + banda, em arranjos primorosos de Hercules Gomes, Henrique Araujo e Proveta. É um disco que já nasceu um clássico da música brasileira, bravíssimo!

Alexandre Dias, diretor do Instituto Piano Brasileiro - IPB
 

Ouça o álbum completo abaixo

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