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postado em 15/08/2020

São Paulo Futuro - A música de Marcello Tupynambá

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Poucas são as gravações existentes, hoje, aos novos olhares e ouvidos de quem um dia foi Marcello Tupynambá (1889-1953). Das mais de 300 obras compostas pelo compositor de Tietê, cidade do interior de São Paulo, parte segue espalhada por sebos; por registros em vídeos produzidos pelo pesquisador e diretor do Instituto Piano Brasileiro (IPB), Alexandre Dias; ou em acervos históricos, como é o caso do violino e partituras do artista, que são mantidos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e acessíveis pelo Acervo Digital Marcello Tupynambá. Outra parte, até então, permanece na memória afetiva e musical de intérpretes, fãs e apreciadores da edificação das peças do autor.

Filho de músicos portugueses, engenheiro formado pela Politécnica da USP, crítico musical e radialista, o célebre compositor nacional segue como referência às melodias do modernismo paulista e às canções com refrão e estrofes – algo não tão comum à época. Os versos das canções criadas por Tupynambá se destacam por terem sido escritos pelos poetas Afonso Schmidt, Alphonsus de Guimaraens, Amadeu Amaral, Castello Netto, Guilherme de Almeida, Homero Prates, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Olegário Mariano, entre outros escritores e alguns representantes da Semana de Arte Moderna de 1922.

Reforçando o compromisso de fazer com que obras e autores esquecidos pelo tempo se façam cada vez mais presentes no repertório da música popular, o Selo apresenta neste mês o disco São Paulo Futuro - A música de Marcello Tupynambá, disponível gratuitamente e com exclusividade no Sesc Digital e, a partir de 9 de setembro, nas demais plataformas de streaming. O álbum traz 11 releituras da obra do compositor interpretadas por um time do calibre de: Fabiana Cozza, Toninho Ferragutti, André Mehmari, Roberto Corrêa, Henrique Cazes, Toninho Carrasqueira, Theo de Barros, Cacilda Mehmari, Dudu Alves, Nailor Proveta, Karina Ninni, Valdo Gonzaga e Hercules Gomes. 

Para saber melhor sobre o conteúdo deste álbum, Marcelo Tupinambá Leandro, bisneto e pesquisador musical e responsável pelo acervo do compositor, preparou um texto de apresentação sobre o material que tem a produção assinada pelo célebre J.C. Botteselli, o Pelão.

Marcello
Marcello Tupynambá | 1946

 

      


São Paulo Futuro - A música de Marcello Tupynambá

por Marcelo Tupinambá Leandro

 

Marcello Tupynambá (1889-1953) nasceu em Tietê, interior de São Paulo, filho de família de músicos. Seu tio foi o conhecido compositor Elias Álvares Lobo (1834-1901), autor da primeira ópera encenada no Brasil com versos em português, com libreto de José de Alencar (1829-1877), denominada A Noite de São João (1859).

Viveu a primeira infância em Tietê, famosa por seus batuques e cateretês, cidade natal também do compositor Camargo Guarnieri (1907-1993) e do folclorista Cornélio Pires (1884-1958). Concluiu o ensino fundamental em Pouso Alegre, Minas Gerais e tornou-se regente da banda local. Aos 15 anos, excursionou pelo interior de São Paulo, acompanhando ao piano – instrumento que aprendeu a tocar sozinho - o flautista Patápio Silva (1880-1907). Anos mais tarde, mudou-se para a Barra Funda, na zona oeste da capital paulista, e, depois, para a Rua Itapicuru, em Perdizes - mesmo bairro em que foi gravada boa parte das músicas deste CD – chegando, inclusive, a tocar ao lado do flautista João Dias Carrasqueira (1908-2000). Foi aluno de violino de Savino De Benedictis (1883 - 1971) e, além disso, era comum ouví-lo improvisar músicas sacras no órgão da igreja de Santa Cecília. Em 1916, formou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica, da USP e chegou a projetar algumas residências na Avenida Angélica e a igreja e Praça Matriz da cidade de Olímpia. Casou-se e teve sete filhos, entre os quais Cecília Menezes Lobo, também pianista, que o ajudaria escrever suas músicas em partitura, após doença que o acometeu e quase o fez perder completamente a visão.

O primeiro sucesso do autor, o maxixe São Paulo Futuro (1914), que empresta o nome ao título deste CD, é apontado como marco inicial na carreira do artista e pode ser conferido, neste álbum, na versão instrumental, interpretado pelo pianista e compositor André Mehmari. Por ocasião da repercussão desta obra, o músico passou a adotar o pseudônimo que o consagrou, pois seu nome de batismo era Fernando Álvares Lobo.

As músicas de Marcello Tupynambá, escritas entre as décadas de 1910 e 1950, devem ser consideradas pertencentes ao espírito revolucionário da Semana de Arte Moderna de 1922. O compositor, com sólida formação intelectual, assim como outros artistas do mesmo período, procurou modernizar o repertório vigente, mediando aspectos da cultura popular brasileira à seleção de músicas tocadas naquele início do século XX.

Mário de Andrade, parceiro do compositor em Canção Marinha (1924), disponível para escuta neste CD na interpretação de Fabiana Cozza e Toninho Ferragutti, escrevera, certa vez, que “Marcello Tupynambá é atualmente entre os nossos melodistas de nome conhecido, o mais original e perfeito”. Oswald de Andrade, apresentando a vanguarda artística brasileira em Paris, em 1923, defendia que “a música contemporânea do Brasil é representada por Tupynambá, Nazareth, Souza Lima e Fructuoso Vianna.” Mais recentemente, o crítico musical José Ramos Tinhorão avaliou a obra de Marcello Tupynambá e atribuiu a ela a mesma importância que tem para a história da música brasileira as peças de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Ernesto Nazareth (1863 -1934) e Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), o Pixinguinha.

Em 1919, sete melodias de Tupynambá chegaram a ser citadas pelo compositor francês Darius Milhaud (1892 -1974), na suíte Le Boeuf sur le Toit, com linhas melódicas copiadas inteiramente das músicas do autor brasileiro, entre elas São Paulo Futuro, Viola Cantadêra, Tristeza de Caboclo, Maricota, sae da chuva e Sou Batuta, interpretadas, neste disco, respectivamente, pelo pianista André Mehmari, pelo violeiro Roberto Corrêa, pelo flautista Toninho Carrasqueira, pelo clarinetista Nailor Proveta e pelo pianista Dudu Alves.

Milhaud, pertencente ao Grupo dos Seis de Paris, de passagem pelo Brasil no final da década de 1910, classificou Tupynambá como “umas das glórias e joias da arte brasileira”, e afirmou que suas melodias eram como estrelas–guia da nossa riqueza musical, ignoradas, desperdiçadas, sem maiores explicações. Escreveu, em 1920, que “Tupynambá e Nazareth precedem a música de seu país como aquelas duas grandes estrelas do céu sulino (Centauro e Alfa Centauri) precedem os cinco diamantes do Cruzeiro do Sul”.

PartiturasAs partituras de Marcello Tupynambá, salvaguardadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e acessíveis no Acervo Digital Marcello Tupynambá, são, em sua maioria, para canto e piano, piano solo, coro, banda e orquestra. Uma obra extensa, composta por mais de trezentas partituras para canto e piano (canções) e piano solo, uma dezena de peças para coro e orquestra (ópera e operetas), outra dezena de músicas para orquestra sinfônica (bailados e trilha sonora) e, ainda, algumas composições para instrumento solo e piano (lendas para violino e piano) e outras para coro (motivos folclóricos e música sacra).

Toda essa diversidade de composições incluía colaboradores, letristas, parceiros e arranjadores. Os versos das canções de Tupynambá se destacam por terem sido escritos pelos poetas Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Afonso Schmidt, Amadeu Amaral, Manuel Bandeira, Castello Netto, Olegário Mariano, Homero Prates, Alphonsus de Guimaraens, entre outra dezena de escritores, alguns representantes da Semana de Arte Moderna de 1922.

Participaram de arranjos de músicas suas os maestros César Guerra-Peixe, Pixinguinha, Gabriel Migliori, Souza Lima e Gaó. Interpretaram suas canções Francisco Alves, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Inezita Barroso e Zizi Possi. Gravaram suas músicas Pixinguinha e Oito Batutas, Altamiro Carrilho, Eudóxia de Barros e Mário de Azevedo.

Escreveram criticamente sobre sua obra Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Darius Milhaud, Menotti Del Picchia, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira, Renato Almeida, Oneyda Alvarenga, Bruno Kiefer, Vasco Mariz, Ary Vasconcelos, Mariza Lira, Edigar de Alencar, Aloysio Alencar Pinto, Mário Nunes, José Miguel Wisnik, Jairo Severiano, Zuza Homem de Mello, José Ramos Tinhorão, Léa Vinocur Freitag, Alberto Ikeda, José G. Vinci de Moraes, Manoel Aranha Corrêa do Lago, Benedito Pires de Almeida, Homero Prates, Duprat Fiúza, Elizabeth Travassos, Ulisses Paranhos, Daniella Thompson, Alexandre Dias, Marcelo Tupinambá Leandro, Beatriz Leal Guimarães e Ailton Rodrigues.

O teatro musicado pode ser considerado o primeiro divulgador da música de Marcello Tupynambá; tão logo suas composições surgiam nos espetáculos, passavam a ser editadas no formato de partitura e gravadas em disco. Muitas foram imortalizadas como sucessos carnavalescos. Para o cinema, Tupynambá escreveu trilhas sonoras e seu ofício, no dia a dia, era acompanhar as fitas de cinema mudo no Largo do Arouche. A partir de 1924, também o rádio se tornaria outro importante instrumento de divulgação de sua obra: Tupynambá foi pioneiro na função de diretor artístico das rádios Educadora, Bandeirantes, Record, Tupi e Gazeta, em São Paulo. Teve ampla participação em episódios políticos do país: esteve à frente das pioneiras lutas por direitos autorais e compôs as marchas Redenção, referente à Revolução de 1930, o Hino do Partido Constitucionalista, que lhe rendeu três dias de prisão, e, ainda, O Passo do Soldado, marcha criada em parceria com Guilherme de Almeida (1890-1969) e cantada nas trincheiras de 1932, em São Paulo.

Marcello Tupynambá atuou desde sempre para o reconhecimento e valorização da arte popular brasileira. Preocupava-se com a música regional, por exemplo: as modas e toadas do interior, com melodias simples e letras inspiradas em assuntos do cotidiano, eram absorvidas e recriadas pelo compositor em versão para voz e piano. José Ramos Tinhorão, analisando os gêneros rurais urbanizados, observa que a responsabilidade pela divulgação do gênero Canção sertaneja se deve ao lançamento do livro de partituras “Lira Paulistana”, em 1919. Segundo ele, “Lira Paulistana inclui as composições com essa indicação: Maricota sae da chuva, Que sôdade e Viola cantadêra. Todas de autoria de Marcello Tupynambá.”

Se, por um lado, sua música se consolidou como forte elemento de formação da identidade nacional, por outro revela uma nítida tendência de expressão individual de um homem de seu tempo, na aposta reconciliatória por uma sociedade menos preconceituosa e desigual, tensionada entre as contradições da vida interiorana e cosmopolita, das divergências entre o universal e o particular, das discrepâncias entre a cultura popular e erudita, prestando testemunho de que, mesmo com toda privação e sacrifício, a vida da humanidade e suas realizações ainda se perpetuam.

Completam, este CD, além das obras já mencionadas, as músicas Sereno, interpretada pelo cavaquinista Henrique Cazes, Canção da guitarra, interpretada pelo violonista Theo de Barros, Alma em Flor, interpretada pela acordeonista Cacilda Mehmari e o pianista André Mehmari, Trigueira, interpretada pela cantora Karina Ninni e o violonista Valdo Gonzaga e, finalmente, Coração, interpretada pelo pianista Hercules Gomes.

Atuando em diversos campos artísticos, o compositor Marcello Tupynambá deve ser considerado um legítimo representante da consolidação da canção brasileira como música nacional por excelência.

Em um de seus últimos trabalhos, figura o Hino da Televisão Brasileira, com letra de Guilherme de Almeida, encomendada pelo jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968) para inaugurar a primeira transmissão de uma emissora de televisão brasileira, a TV Tupi de São Paulo, em 18 de setembro de 1950.

O presente CD, que reflete a visão do Sesc São Paulo em produzir álbuns fundamentados em pesquisa rigorosa de acervos musicais de autores brasileiros, pretende trazer à escuta o conjunto de obras indispensáveis de Marcello Tupynambá, inserido no amplo projeto realizado pela equipe do Selo Sesc em resgatar compositores essenciais para a compreensão do sentido da música nacional, do início do século XX.

Marcelo Tupinambá Leandro, pesquisador musical e bisneto de Marcello Tupynambá
J. C. Botteselli (Pelão), produtor musical