A junção de poesia e música transcende o campo da música popular! O projeto Puertas, de Adélia Issa e Edelton Gloeden, coloca a poética de autores consagrados junto à produção de música de concerto dos séculos XX e XXI.
A soprano Adélias Issa e o violonista Edelton Gloeden são dois dos mais importantes intérpretes da música de concerto no país, neste álbum eles trazem um repertório de canções escritas originalmente para voz e violão. O exercício de Adélia e Edelton em aproximar tempos distintos, construindo as vozes de cada peça de acordo com o estado de espírito e a identidade cultural expressos nos textos, torna, tanto o álbum quanto a fala de seus idealizadores, dignos dos ouvintes atentos".
As estruturas musicais criadas pelos brasileiros Paulo Costa Lima, Jorge Antunes e Antonio Ribeiro, pelo uruguaio Eduardo Fernández, e pelo galês Stephen Goss, entre outros, relacionam-se intensamente com as palavras de Shakespeare, García Lorca, Gabriela Mistral, Hilda Hilst, e de outros grandes nomes da literatura.
O recital de lançamento acontece nesta sexta, 24/11, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e o texto sobre o conceito do álbum e os autores que entraram nessa pesquisa você lê abaixo. A playlist com o disco na íntegra vem na sequência!
Puertas
Esta gravação traz um repertório original voltado à canção de câmara para voz e violão. Nossas escolhas partiram de textos poéticos de autores consagrados da literatura brasileira e internacional, abordados por compositores de tendências estéticas diversas, com apenas uma transcrição autoral de Denis ApIvor. Nestas obras, a palavra é certamente o elemento germinal da composição, sugerindo “portais” que dão acesso a conexões atemporais dentro do universo das ideias, imagens, memórias e emoções de seus autores. A profundidade e a força dos textos imprimem grande teatralidade a essas canções, o que nos fez optar por uma postura interpretativa das estruturas musicais em função da intenção e da expressividade das palavras. O repertório caracteriza-se ainda pelo tratamento instrumental peculiar dado ao violão, que pode ambientar o texto, comentar situações psicológicas e até mesmo transformar-se em personagem.
Podemos identificar dois blocos nesta seleção. No primeiro, recorremos a autores que deram importantes contribuições a este repertório específico para voz e violão, e que, acreditamos, não tenha sido ainda devidamente divulgado. São eles:
Denis Apivor (Irlanda) - Seis Canciones de Federico García Lorca Op.8
Este autor, hoje pouco conhecido, concentrou sua produção nas técnicas da Segunda Escola de Viena; entretanto, em alguns momentos, mostrou-se atraído pela cultura espanhola, possivelmente através da música de Manuel de Falla, Joaquín Turina, e da literatura, através de Federico García-Lorca, reproduzindo e mesclando elementos ibéricos aos parâmetros seriais. Numa primeira audição deste ciclo lorquiano de ApIvor, terminado em 1946, pode-se ter a impressão de uma composição criada por um autor espanhol, tal a intensidade com que mergulhou nesse universo poético-musical. Além da edição, nos valemos de uma revisão da partitura feita em 1980 pelo compositor, e que nos foi cedida pelo violonista escocês Paul Galbraith.
Mario Castelnuovo-Tedesco (Itália/USA) - Ballata dall’Esilio
O compositor manteve-se fiel à linhagem da grande tradição italiana. Colaborou intensamente com o lendário violonista espanhol Andrés Segovia, deixando uma das mais significativas contribuições para o repertório violonístico. A escolha do poema de Guido Cavalcanti (1300) foi motivada pela temática do exílio, drama sofrido tanto pelo poeta quanto pelo compositor. Cavalcanti, apesar de ser amigo de Dante Alighieri, foi banido por este de Florença – e é citado no Inferno e no Purgatório em A Divina Comédia. Da mesma forma, Castelnuovo-Tedesco, em 1939, deixou Florença, sua cidade natal, exilando-se nos Estados Unidos devido ao domínio fascista.
Heimo Erbse (Alemanha) - Nachklänge op 33
Apresenta um forte estilo pessoal cultivado dentro da tradição germânica. Em sua linha de canto novecentista reporta-se a Robert Schumann, a Johannes Brahms e a Hugo Wolf, com um tratamento instrumental contrastante e até mesmo antagônico ao vocal, embasado na riqueza de articulações, no ritmo vivo e na harmonia largamente expandida. Em Nachklänge (Ecos), Erbse valeu-se da poética de Joseph von Eichendorff que, através da contemplação da natureza, expressa um intenso saudosismo e a melancolia pelo passar do tempo. A linha vocal sugere a juventude, o passado, e o presente manifesta-se com a complexidade da escrita do violão.
O segundo bloco é formado por obras de autores que atenderam à nossa proposta de enriquecer o repertório original para voz e violão com textos poéticos fortes e impactantes. Estas são as impressões dos compositores:
Stephen Goss (País de Gales) - Songs of Ophelia
“Na peça Hamlet de Shakespeare, a jovem Ofélia está dividida entre a obediência ao pai e o amor por Hamlet. É impossível para ela conciliar as personalidades contraditórias desses dois homens. Com maus pressentimentos, cada vez mais intensos, a angústia leva-a ao desespero e, em seguida, à loucura.
Minhas ‘Canções de Ofélia’ são fragmentos extraídos da Cena 5 do Ato IV da peça, quando a insanidade de Ofélia é revelada às outras personagens e ao público. Ela canta sobre o caos, a morte, e o amor não correspondido. O Rei e a Rainha tentam falar com ela, mas Ofélia só responde com palavras incompreensíveis. As canções abrangem uma ampla gama de emoções, saltando subitamente entre extremos de humor e temperamento.”
Eduardo Fernández (Uruguai) - Dos Canciones de Gabriela Mistral
“Dos Canciones de Gabriela Mistral foram escritas em 2015 para Adélia e Edelton, rompendo um longo silêncio compositivo, e é minha primeira obra para voz solista. Surgiu de um interesse pessoal pela obra de Gabriela Mistral, e eu tinha estes poemas em mente já há vários anos; sempre gostei de suas atmosferas completamente contrastantes, e (de modo bem diferente) algo enigmáticas: ambos pareciam estar pedindo música. Suprimi algumas estrofes de “Puertas” porque preferi um final mais escuro do que o de Gabriela, e espero que me perdoem. Ambas as canções aludem a formas tradicionais sul americanas: “Puertas” ao estilo rioplatense e “Doña Venenos” à cueca chilena. Tive a impressão de que o estilo picaresco desta última se adapta particularmente bem ao poema de Gabriela, cheio de alusões e subentendidos; segundo suas memórias, quando era consulesa do Chile na Califórnia, teve uma vizinha muito parecida com Doña Venenos, embora não se sabe se chegou a conhecê-la.”
Jorge Antunes (Brasil) - Solitária Noite
“O ano de 2015 marcou os 250 anos de nascimento do grande e polêmico poeta português Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (1765-1805). A efeméride passou despercebida da comunidade lusófona e isso desagradou-me - com esta canção, homenageio o grande sonetista. Bocage, nesse soneto, lamenta as traições e deslealdades de sua musa, durante um passeio pela noite, falando a um lêmure e a outros espíritos que vagueiam sobre ele. Efeitos especiais no violão, com um copo friccionado nas cordas, procuram sonoridades espaciais para representar esses espíritos. A obra é dedicada à cantora Adélia Issa.”
Antonio Ribeiro (Brasil) - Cantares de Hilda
“Ao se travar contato com o poderoso universo de Hilda Hilst é impossível permanecer incólume, pois o drama lá residente invade e fere a frágil estabilidade da alma. Assim ocorreu comigo quando, tempos atrás, Adélia Issa me pediu para compor uma canção sobre a poesia de Hilst: fui capturado pelo jorro de emoções característico de sua escrita e, imbuído por tal torvelinho, fiz vir à tona um ciclo formado por três peças para voz e violão em que a música ecoa, revela, ressalta e amplia as profundezas psicológicas dos poemas que escolhi. Desde então, os Cantares de Hilda - ficou assim chamado o ciclo - deixaram de ser meus e passaram à Adélia e ao Edelton, que deles se apropriaram e vêm desvelando com suprema maestria as facetas recônditas do mundo de Hilda e, obviamente, dos mundos que cabem em cada um de nós.”
Paulo Costa Lima (Brasil) - Oriki de Erinlé
“Que o ancestral seja contemporâneo! A canção foi feita sob os auspícios dessa premissa, na década de 90, moldando um discurso que pode ser entendido de formas distintas - como antigo (em mais de um sentido), como recente, ou como um curioso lusco-fusco de intenções e temporalidades - gerando um misto de deslumbre e estranhamento, um vai-e-vem de gestos que perpassam popular e erudito, música contemporânea e batidas de terreiro. Fala a África mítica - através do texto recolhido por Pierre Verger - fala a Bahia seu umbigo, lugar de reconstituição em música e sociedade, fala a perspectiva dos compositores da Bahia, embalada pelo curioso amálgama de organicidade e relativização (ou inclusividade), como bem-dizia Ernst Widmer. A canção vai se projetando una - graças a essa tal organicidade -, vai exigindo esse lugar de voz tão sutil (que Adélia e Edelton entenderam e recriaram com especial atenção) e, ao mesmo tempo, atravessa precipícios, se desequilibra, ameaça desatar e retorna fiel à mentira/verdade poética que imaginou e celebra.”