Quem olha para o Brasil como um país de cantoras pode achar que a democracia esteja presente também em outras esferas da música popular. Ledo engano. Basta pensar no número de mulheres instrumentistas em atividade para percebermos que estamos bem distantes dessa desejada realidade. E se hoje a situação parece um pouco melhor do que antes, não podemos nos esquecer das pioneiras. Mulheres que, emergindo de um ambiente totalmente hostil, abriram espaço para que outras pudessem trilhar esse caminho.
Lilian Carmona é a grande pioneira das mulheres que se dedicam à arte da percussão. Já tocou com músicos de peso, como Baden Powell, Phil Wilson, Leny Andrade, Toquinho, Diana King, Nana Caymmi, Gal Costa, Dominguinhos, Jane Duboc, Nara Leão, entre muitos outros.
Com mais de 40 anos de carreira, Lilian é unanimidade quando se trata de qualidade musical, mas até então não possuia um registro seu como intérprete principal. Pois bem, com este lançamento a lacuna está preenchida. Em The First!, Lilian refaz sua trajetória artística, com temas de compositores que desempenharam papel importante em sua vida musical.
Mas não vamos falar sobre este disco, deixaremos que a voz do grande maestro e compositor Amilson Godoy ecoe sobre a vida e obra dessa gigante instrumentista brasileira. O disco na íntegra você escuta na playlist ao fim do texto.
"Ao ouvir o máster do CD The First, da Lilian Carmona, um largo sorriso brotou no meu rosto: logo nos primeiros compassos da faixa Dá Licença, composição e arranjo de Débora Gurgel, exclamei meu primeiro “muito bom” de uma série que se seguiu a cada instante e confesso que uma emoção amiga tomou conta de mim. Digo emoção amiga, pois conheço Lilian desde os seus 11 anos, e a amizade que cultivamos por todo esse tempo se estendia a toda a família.
São arranjos primorosos, todos eles: Débora Gurgel, Julinho Figueiredo, Pablo Zumarán e Bruno Alves, no repertório premiado presente no CD, mantêm o trabalho musical de compositores consagrados em um patamar extremamente elevado, somando as participações de músicos maravilhosos que contribuem para manter a personalidade destacada da obra, o que a torna única dentre inúmeros trabalhos contemporâneos lançados em nosso país nos últimos tempos.
Ouvindo o CD voltei ao passado, revi a trajetória de Lilian Carmona, que ainda criança já encantava a todos com seu desempenho. Ela venceu os obstáculos de ser musicista no Brasil, especialmente o de ser mulher tocando bateria, o que no fim dos anos 1960 e início da década de 70 era uma iniciativa inusitada. Para o profissionalismo foi só um salto para o qual pude contribuir: levava a Lilian comigo para os primeiros trabalhos profissionais no teatro com a peça Missa Leiga, na TV Cultura com os programas Calouros Cultura e Inglês com Música, junto a meu Septeto Instrumental e nas gravações das trilhas da Vila Sésamo (fui o diretor musical da primeira versão).
A partir disso, Lilian foi para turnês pelo estado de São Paulo, para o exterior - foi aluna na Berklee College of Music e convidada para tocar junto à Filarmônica de Londres -, e para a vida profissional, como mestre do seu instrumento, tornando-se referência como baterista. Hoje, graças ao Sesc, podemos ter acesso a seu trabalho solo com a gravação numa obra obrigatório que resiste aos modismos e mantém a baterista à frente do seu tempo, como sempre esteve.
Boa sorte, Lilian, que a música faça parte de sua vida, pois quem ganha com isso somos nós, com o privilégio de continuar te apreciando.
Bravíssimo!
abril de 2017
Amilson Godoy