Muitos letristas (não Carlos Rennó, ele se identifica como letrista mesmo) preferem se chamar de poetas. Porém, não tantos letristas (e nem poetas) demonstram o zelo que ele tem (à excelência) pela arte (dos grandes poetas) de escolher palavras (em som e sentido) para compor canções. Esse disco, “Poesia”, vem fazer justiça. Não a de podermos chamá-lo, Rennó, de poeta. Mas de revelar que os letristas (os grandes) são o que os (grandes) poetas são. “Poesia”: em cada letra de cada palavra e em cada palavra de cada letra a que existe em um poema. E as construções de Rennó têm a vantagem de não abdicarem da naturalidade das letras para exibir a construtividade da poesia. Arrima da rima a nota da canção.
Confessadamente influenciado por poetas de extremo rigor formal, como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, ambos com fama (autoproclamada, no caso do primeiro) de antilíricos, o letrista Carlos Rennó coloca sua habilidade ateé virtuosística a serviço de um lirismo que pode iludir ouvidos (e tinos) ingênuos. A letra de “Minha Preta”, com suas rimas (toantes) anagramáticas, talvez seja o exemplo mais claro do que digo: “Minha diva / Minha vida / Em suma / A musa” (parceria com Geronimo). Mas também os versos de “Nova Trova” (com Zeca Baleiro): “Alma à qual almejo me algemar; / Poder saber / O seu sabor”, onde as rimas se dão não na mesma estrofe, mas entre as estrofes – rimas que Ezra Pound chamava polifônicas. Além da imprevista: “Remirá-lo hei / Admirá-lo-ei”. Em procedimentos assim, Rennó evoca Cole Porter, mas também Arnaut Daniel, o trovador, de outra forma citado na letra de “Todas Elas Juntas Num Só Ser” (com Lenine), ao lado de Hervé Cordovil, É O Tchan, Gabriel O Pensador, Johnny Mercer e Braguinha.
Poesias (in)distintas. E por falar em processamento sutil de influências, Carlos Rennó demonstra uma vez mais nesse disco ter aprendido dos poetas concretos a concepção total de cada projeto, quando e onde tudo é estruturante. Assim, a própria escolha dos parceiros (e dos intérpretes) para cada letra (ou versão) é pinçada com o cuidado com que ele escreve uma letra: significante. Paideuma. Em “Exaltação dos Inventores” (com Luiz Tatit), o letrista (“...e para que poetas...?”) brinca com essa noção de paideuma e a imbri(n)ca na própria letra, em jogos que já chamam para a dança o prosador (aquele meu xará) que disse que palavra cantada é palavra voando e que também fundiu nomes e verbos em palavras-valise no seu “Finnegans Wake”. “Poesia”, Carlos Rennó. Tiro minha cartola, reverente...
James Martins é poeta e jornalista
O CD Poesia é o primeiro álbum de Carlos Rennó. Com o lançamento, o Selo Sesc realça o trabalho do letrista, expondo suas criações nas composições e vozes de artistas como Gilberto Gil, João Bosco e Arnaldo Antunes. Ao inverter uma estrutura que comumente destaca o trabalho dos músicos, se evidencia um segmento menos conhecido da produção artística brasileira e estabelece um diálogo entre o autor das letras e seus intérpretes.
São 16 faixas com novos registros de canções já gravadas e gravações de canções inéditas com parceiros de Rennó. Os compositores e intérpretes foram escolhidos de acordo com as letras, articulando um enlace perfeito entre os componentes de cada faixa, em busca de uma obra totalizante que reflita a produção do autor.
Os shows de lançamento acontecem nos dias 26 e 27/9 no Sesc Bom Retiro