Qual a música mais difícil que existe? A não ser que você seja um savant e sua mente desconheça qualquer limite na hora de lembrar de uma letra, do início de uma melodia ou dos últimos acordes de uma canção (faça o exercício e veja até onde sua mente vai), independentemente de qualquer técnica adquirida, o que determina a dificuldade de uma música é o quanto ela é difícil de tocar (ou ouvir também, a depender do ponto de vista). Ainda mais e sendo um pouco mais camarada, se trata do quão difícil é tocar ou ouvir essa música levando em consideração a época em que ela foi composta.
Até porque, assim como não podemos ser anacrônicos ao falar sobre costumes em uma sociedade, o mesmo vale pra música. No século 19, por exemplo, era mais complicado tocar uma obra do húngaro Franz Liszt, conhecido como um grande inovador da música para piano, do que nos dias atuais, passados mais de cem anos de modernismo, jazz e coisas como a música eletroacústica ou atonal. O mesmo acontece com os solos complexos de Joe Satriani na meio da década de 80 e agora como uma quantidade considerável de tutoriais e vídeos de music learning no Youtube. Esse “desafio estético”, passou a ser considerado mais "fácil", depois que dezenas de músicos profissionais e amadores, depois de algum treino, conseguiram tocar as suas obras sem problemas.
Mas onde fica a escuta nisso? Tomemos como exemplo Daniel Tammet, um savant norte americano que possui sinestesia linguística, numérica e visual. Isto é, sua percepção sobre palavras, números e cores está entrelaçada a uma nova forma de aprender e compreender o mundo. Daniel insiste que a percepção é a chave para lidar com operações complexas como dominar uma nova língua ou solucionar rapidamente uma fórmula matemática. Ele consegue fazer isso relacionando números com cores ou sons com imagens de uma maneira muito singular.
O que na sua palestra ao TED Talks pode parecer um absurdo inalcançável, na prática é justamente isso, criar uma lógica própria para determinar quais peças vão ser montadas em seu quebra-cabeça mental. Como um grande exercício de livre associação misturado a um bom repertório cognitivo. Daniel crê que ao longo de nossas vidas, somos capazes de absorver intuitivamente várias relações entre o que vemos, sentimos e ouvimos e transformá-las em novas linguagens e códigos que estarão ao nosso dispor quando precisarmos.
Agora faça uma reflexão: Quantas vezes você ficou com receio em se aproximar de um disco novo mais “cabeçudo”, aprofundar-se em uma leitura mais densa ou mesmo de mergulhar num filme com pelo menos três vezes a sua idade? Com que frequência você coloca a sua percepção à prova?
Aí caímos na música contemporânea e logo torcemos o nariz. Mesmo sabendo de tudo isso, por que essa música ainda nos causa tanta estranheza e temos tanta dificuldade em compreendê-la?
Primeiramente, porque tentamos encontrar os padrões musicais já estabelecidos quando a ouvimos e isso não vai acontecer. Segundo Aaron Copland, compositor do começo do século XX, “essas extensões dos procedimentos convencionais implicam necessariamente a capacidade, por parte do ouvinte de se doar, seja por instinto, seja pelo treinamento, para o estilo pouco conhecido.”
Outro motivo é que quando ouvimos uma música contemporânea e não a compreendemos, temos a tendência de duvidar da seriedade da composição. Porém, é muito importante que tenhamos o objetivo do compositor bem claro antes de ouvir qualquer música desse estilo. Aron acredita (e pode estar errado) que a chave para a compreensão dessa música é ouvi-la várias vezes. Só assim vamos acostumar nossos ouvidos a esse novo tratamento do material musical. Seja a música gravada ou seja ela, com todas suas nuances, apresentada ao vivo. É despir-se mesmo dos medos de incluir uma ou duas faixas na sua playlist ou mesmo comparecer a concertos que tragam esse repertório. Afinal, o que é a vida senão um eterno shuffle?
É um pouco nesse sentido que apresentamos o mais novo trabalho da Camerata Aberta no disco Sobreluz. A Camerata é considerada um dos principais ensembles (conjunto, em inglês) de música contemporânea no Brasil especializado na interpretação, divulgação e ensino de música dos séculos 20 e 21. Ela surgiu em 2010, formada sobretudo por membros da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim) e passou 5 anos apresentando obras de compositores brasileiros, peças estrangeiras e composições históricas do século passado.
Tudo isso mantendo-se com aporte financeiro do estado e buscando quebrar o paradigma de serem considerados demasiadamente herméticos. Sim, a Camerata foi construindo, pouco a pouco, um público para audição deste repertório, tornando-se uma referência para o aprendizado da música de compositores contemporâneos pouco ou mesmo desconhecidos no Brasil e no mundo. Sobreluz é o segundo disco da Camerata pelo Selo (em 2012, eles lançaram Espelho D’Água que recebeu o 8º Prêmio Bravo, na categoria Melhor CD de Música Erudita) após um assombroso hiato e ameaça de descontinuidade permanente.
Com 15 músicos, sua existência já é uma vitória! Por isso, o convite ao exercício da escuta, e claro, da percepção, prossegue! Ouça Sobreluz nas plataformas digitais no link.
[As faixas Notes On Light (2006) de autoria da compositora Kaija Saariaho estão presentes na versão física do CD, previsto para comercialização em agosto de 2019 na Loja Sesc e por aqui no site]
“Cultiva a arte de tocar, para dar lugar a uma sempre nova
arte de ouvir. A arte só pode ser presente, um agora
dadivoso, prismaticamente histórico, transpassado de
porvires. Pois ouvir é como viver – ouvidos novos não
cessarão de brotar em canteiros de obras em obras.”
Por Mauricio Ayer (texto de encarte do CD Sobreluz)