Por trás das máscaras, histórias de refúgios

25/08/2020

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Pindi Charlotte Josee, da República Democrática do Congo (Foto: Marlene Bergamo)

Por Maria Nilda R. Santos – Projeto Deslocamento Criativo*

Diante da crise gerada pela pandemia da COVID-19, imigrantes e refugiados que vivem em São Paulo foram fortemente impactados, especialmente os microempreendedores, que dependem de eventos para comercializar seus produtos. A vida de todos foi afetada pelo novo coronavírus, mas essa população, em especial, já possui um histórico de ruptura profunda e encontra inúmeras dificuldades de adaptação ao dia a dia, ao idioma, aos costumes e a tantas outras transformações que precisam ser absorvidas em um país desconhecido. 

Essa população também enfrenta problemas de xenofobia e discriminação. Ora porque são migrantes e, para alguns, podem representar ameaça no campo do trabalho, ora porque são negros, mulheres etc. O projeto Deslocamento Criativo se propôs a pensar quais seriam as possibilidades de geração de renda e as alternativas econômicas que garantissem meios de sobrevivência para esses indivíduos. Por já reunir um pequeno grupo que atua na área da Moda, surgiu a ideia da produção de máscaras artesanais. 

Contra o vírus e contra o racismo

Migrantes vindos de vários países africanos relataram surpresa ao constatar o preconceito contra negros no Brasil. Alguns dizem ter escolhido vir para cá diante do reconhecimento de identidades fenotípicas. A incompreensão também surgia do contraste da realidade com as imagens idealizadas de um país miscigenado, que costumam circular o mundo por meio do futebol ou do Carnaval, por exemplo. 

Diante desse contexto, não bastava fazer máscaras artesanais. Adotar estampas africanas na produção trouxe outras dimensões também almejadas: sensibilizar a sociedade, romper o preconceito, apresentar a beleza de outras culturas e combater o racismo. A escolha por estampas africanas poderia assim ressaltar as origens das e dos migrantes e destacar sua riqueza cultural.

A Moda, em qualquer parte do mundo, contém importantes simbologias que podem sinalizar os valores de uma determinada cultura e espelhar costumes. É assim nas distintas expressões de povos vindos do continente africano. O tecido com a imagem da flor de hibisco, chamada de “flor de casamento”, por exemplo, costuma ser presenteado aos noivos na República Democrática do Congo, como forma de desejar sorte ao novo casal. Em outra estampa, é possível ver uma ave pescadora africana que se alimenta principalmente de peixes e vive próxima a lagos e rios da África Subsaariana, conforme explica o escritor angolano João Canda. Ela representa os países da Zâmbia e Zimbábue. Seu voo, em direção ao pôr do sol, simboliza a esperança e a fartura proporcionadas pela natureza.

Máscaras produzidas pelo Deslocamento Criativo (Foto: Divulgação)

Processo de produção
Renée Ross-Londja, natural da Guiana Inglesa, foi quem começou a produzir as primeiras peças, antes mesmo de a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendar o uso das máscaras como meio preventivo. A pedido do projeto Deslocamento Criativo, foi feita uma primeira remessa de produtos, divulgados nas redes sociais para buscar possíveis compradores. O Observatório da Migrações da Unicamp adquiriu uma quantidade expressiva de máscaras e assim vieram outros pedidos, que possibilitaram ampliar o número de produtoras e, consequentemente, gerar renda para mais famílias.

A convite do Sesc Vila Mariana, fomos contratados para participar do Projeto Tecido Solidário, do Sesc São Paulo. Foram produzidas 1000 máscaras entre os dias 10 e 21/07/2020, direcionadas para distribuição gratuita entre funcionários do Sesc.

Atualmente, são cinco costureiras e costureiros mais frequentes, número que se alterna conforme a demanda dos pedidos. Ao menos 25 pessoas (famílias das costureiras) são beneficiadas diretamente com a renda adquirida por meio desse trabalho.

A parte mais intensa do projeto foi a primeira fase, com a descoberta das fórmulas que nos dessem um bom fluxo de trabalho. Entre as questões enfrentadas, tivemos que estabelecer regras de higiene no processo de produção, determinar padrões de medidas e outros detalhes que deveriam ser seguidos, comprar e distribuir elásticos e aviamentos necessários, estabelecer como seria feita a entrega e a distribuição dos produtos, considerando que cada costureira reside em regiões diferentes da cidade. 

A logística também foi complexa, uma vez que a proposta era trabalhar em casa, evitar a exposição social e o risco de contrair o vírus.  Com os fluxos seguros determinados, a produção fluiu e a procura pelas máscaras têm sido contínua. Temos o sentimento de também estarmos contribuindo para minimizar a propagação do vírus. É uma saída sustentável quando o que se faz é importante para si e para os outros, para um bem comum.

Conheça quem produz as máscaras artesanais

– Renée Abegail Ross Londja, da Guiana Inglesa, e Shesa Otepa Londja, da República Democrática do Congo, têm uma história peculiar: passaram nove anos namorando pela internet. Ao decidir casar, a Guiana Inglesa não aceitava pessoas em situação de refúgio e ambos se encontram em Manaus; de lá, mudaram-se para São Paulo. Antes, Renée era gerente de restaurante e Shesa estudara gemologia, mas trabalhava em empresas. Ainda em Manaus, Renée precisou descobrir uma nova atividade, pois ainda não falava português. Aprendeu a fazer bonecas de pano e, como não encontrava bonecas negras, resolveu investir neste tipo de produção e em outros produtos na mesma linha. Hoje é artesã e tem o seu próprio projeto: @renabesartes. Shesa, além de atuar no artesanato com Renée, dá aulas de idiomas, cursos sobre tambores africanos, entre outros.

– Pindi Charlotte Josee, da República Democrática do Congo, e Maria Das Neves L. Pereira, pernambucana, têm uma luta em comum: moram na ocupação 9 de Julho do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em São Paulo.  Lutam pelo direito à moradia digna. Há alguns anos, Das Neves criou uma oficina de costura e, pouco a pouco, os migrantes foram chegando. Muitos nem sabiam onde viveriam quando saíssem dos abrigos oferecidos pela Prefeitura, com tempo de estadia determinado. Na República Democrática do Congo, Charlotte sonhava ser médica, e com esforço os pais ajudaram-na a se formar em enfermagem. Por aqui já fez de tudo um pouco, agora é cuidadora de idosos e faz parte da oficina de costura criada pela Das Neves. Se desdobra para enviar dinheiro para a família, com quem deixou o filho, em seu país.  Uma linda troca entre brasileiras e estrangeiras que tem em comum o enfrentamento de desigualdades. @movimentomstc 

– Gonzalo Guachalla, veio da Bolívia em busca de melhores condições de vida. Formou-se Técnico em Mecânica Industrial, mas não pode exercer a profissão ao chegar no Brasil, porque era necessário fazer a equivalência do diploma. Para sobreviver, foi trabalhar nas oficinas de costura. Com o tempo, ao lado de um irmão, criou uma oficina de costura própria, a G&L Confecções Eireli, que emprega até 10 funcionários.  @glconfeccoes_eireli

– Hayam Abo Kasim veio da Síria com a família, porque temia pela vida em meio a um contexto de guerra. Ela estudava moda na ESMOD International, mas o sonho foi interrompido. No Brasil, Hayam criou um modesto ateliê de moda, no Brás, que não foi adiante. Hayam aspira ser uma Personal Stylist (consultora de moda de artistas). @hiamabokasem 

SOBRE O PROJETO DESLOCAMENTO CRIATIVO 
O Deslocamento Criativo é uma iniciativa de Impacto Social que visa identificar e contribuir para a sustentabilidade de refugiados e imigrantes contemporâneos que atuem, ou queiram atuar, na área da economia criativa. A iniciativa partiu de uma pesquisa apoiada pelo PROAC editais que visava identificar os profissionais vindos dos 5 países de maior população, em SP, que atuavam nas áreas da economia criativa e suas demandas para se tornarem autossustentáveis, especialmente: Moda, Artes, Cinema, Gastronomia, Design, Música, Dança, Cursos de Idiomas.

*Maria Nilda R. Santos, idealizadora do Deslocamento Criativo, acumula experiência de mais de dez anos com populações migrantes. Na criação deste projeto, contou com a participação de Rita Nardy, Raquel Sabrina e Alessandra Pereira, além de um grupo de pesquisadores profissionais voluntários, liderados por Marta Capacla.

Instagram: @deslocamento.criativo
https://www.facebook.com/DeslocamentoCriativo 
site: http://www.deslocamentocriativo.com.br/

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