Saúde e Trabalho pela Perspectiva das Relações Raciais

11/04/2023

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Por Dra. Clélia Prestes

Resumo

Kehinde, personagem de “Um defeito de cor”, obra de Ana Maria Gonçalves, é trazida de um território africano para o Brasil onde é escravizada. Já Mirtes Renata precisou enfrentar vários perigos enquanto trabalhava no momento mais mortal da pandemia de Covid-19, mas a maior vítima foi seu filho, Miguel, morto pelo abandono praticado por Sari Corte Real, a patroa. O que essas duas mulheres têm em comum? Quais reflexões sobre saúde e trabalho emergem pela perspectiva das relações raciais? Que saúde tem uma sociedade constituída a partir de relações desiguais? Quais recursos para a saúde estão disponíveis para os diferentes grupos raciais no Brasil? Essas são algumas das questões que perpassam esta palestra que traz a perspectiva das pessoas negras.


Qual a relação entre Kehinde e Mirtes? E entre Nilma e Francia? Quais reflexões sobre saúde e trabalho emergem pela perspectiva das relações raciais? Para responder a essas perguntas, e para discutir saúde e trabalho no Brasil, precisamos retomar a história e a forma de organização da sociedade brasileira. Ambas, profundamente influenciadas por elementos raciais, de gênero e de classe.

No caso das relações raciais, é o trabalho (a escravização, melhor dizendo) o fator responsável pela constituição do país como diáspora africana, ou seja, como região pra onde foram trazidas pessoas africanas em grande número, o palco do maior deslocamento transatlântico forçado de corpos, corporeidades, práticas, saberes, tecnologias, religiosidades, artes, ciências e concepções, que tornaria o Brasil o segundo país em número de pessoas negras no planeta.

A terra indígena Pindorama, onde trabalho era significado de esforço coletivo para produção de meios de subsistência, cuidado da terra, da comunidade e de outros seres, é transformada em Brasil com a invasão de portugueses, quando trabalho passa a significar escravização, e o país passa a ser território de destino de milhões de homens, mulheres e crianças africanas.

No encontro com novas terras e novos povos, constroem conjuntamente o país em que hoje vivemos. O trabalho vai tendo outros formatos, a partir da pseudo-abolição, inclusive por ter sido inconclusa, até chegar aos atuais contornos de desigualdade.

O que foi configurado como trabalho forçado de pessoas africanas para subsistência e enriquecimento de portugueses e seus (suas) descendentes, é, desde sempre, tensionado por experiências de resistência à escravização, e aí o trabalho também é espaço de construção de sentido na nova condição de vida, ou de produção de subsistência comunitária em territórios quilombolas, ou de organização cooperativa para compra coletiva de liberdades.

O trabalho também funciona como meio de vida após a pseudo-abolição sem reparação, quando o formato de organização social muda, mas permanecem as mentalidades escravagistas. As relações passam a ser mediadas por direitos, salários, enquanto as desigualdades e lutas se atualizam.

Kehinde, personagem de “Um defeito de cor”, obra de Ana Maria Gonçalves, é trazida de um território africano para o Brasil, é escravizada, e encontra algumas poucas brechas de autonomia ao longo dos muitos trabalhos que assume, ou inventa, em busca de sobrevivência, de condições dignas de trabalho, em busca de saúde, de poder construir relações amorosas e família, na luta por seus filhos, e pelo que deveria ser um direito nato: a liberdade.

Há similaridades com tantas mulheres negras que, ainda hoje, assumem lutas semelhantes, e na pandemia não foi diferente. Assim como Kehinde, Mirtes Renata precisou enfrentar vários perigos enquanto trabalhava. Era outro momento histórico, e o maior risco seria a pandemia em seu momento mais mortal, e ela exposta para trabalhar como empregada doméstica. A maior vítima foi seu filho, Miguel, morto pelo abandono praticado por Sari Corte Real, a patroa, e então Mirtes começa a luta por justiça. Kehinde e Mirtes são casos comuns que ilustram como se dão as relações de trabalho no Brasil, pautadas pelas relações raciais.

E a saúde? Também presente no título, perpassa todas essas questões. Quais recursos para a saúde estão disponíveis para os diferentes grupos raciais no Brasil? Como alguns grupos desenvolvem resistência e busca por saúde nesse panorama? Quais estratégias são praticadas para enfrentar os efeitos psicossociais e promover condições saudáveis para si e para a sociedade como um todo?

Que saúde tem uma sociedade constituída a partir de relações desiguais? O que é ser saudável em uma sociedade adoecida? De onde virá saúde integral? Questões perseguidas nas produções de pessoas negras, nos processos históricos e ainda muito presentes de resistência, nas formulações teóricas, nas propostas civilizatórias, nos sentidos de morte e de vida.

Daí surge a conceituação de Bem Viver, disseminada por Nilma Bentes, feminista negra de Belém do Pará, referência no movimento negro e de mulheres negras. Surge também a conceituação de Vivir Sabroso, adotado por Francia Márquez, negra, mãe solo, advogada, ativista ambiental, defensora de direitos humanos, e vice-presidente da Colômbia.

A partir de inspirações como essas, Clélia Prestes teoriza que saúde só é possível se existir horizontalidade das relações, incluindo as de trabalho. Afirma que relações baseadas em opressão e exploração adoecem não apenas quem está em situação de desigualdade, mas também as pessoas que assim obtém privilégios e bem-estar, assim como suas instituições ou sociedades.

Um novo pacto civilizatório, inspirado no Bem Viver ou no Vivir Sabroso, permitirá a saúde das pessoas e organizações, dos diferentes seres, das relações estabelecidas. Esse é o futuro com saúde por construir.


Clélia Prestes
Diretora da Mátria – Saúde, Relações Raciais e de Gênero. Coordenadora de Formação no AMMA Psique e Negritude. Especialista em Psicologia Clínica Psicanalítica (UEL). Doutora e Mestre em Psicologia Social (USP). Foi Pesquisadora Visitante no Depto. de Estudos Africanos e Afro-Diaspóricos (University of Texas at Austin). Participou do Programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância, na Harvard University.

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