Um jogar subversivo: game design como prática crítica

01/08/2020

Compartilhe:

Imagem de pessoa jogando com óculos de realidade virtual | Foto: Jaderson Souza

Os jogos digitais podem ser capazes de criar empatia e sensibilidade para temas sociais relevantes, tornando-se ferramentas potentes na formação do pensamento crítico. Partindo desse princípio, uma nova geração de desenvolvedores acredita na produção de games para muito além do entretenimento, criando plataformas para promover mudanças sociais no mundo real. Tema é pauta também de debate na série Ideias, na quinta-feira, dia 6 de agosto, às 16h, ao vivo no canal do Sesc São Paulo no YouTube (atualização: o debate gravado está disponível aqui)

por Anita Cavaleiro e Enio Rodrigo B. Silva*

Apesar de não haver grandes dúvidas sobre o potencial transformativo dos jogos digitais, não são muitos os desenvolvedores que se engajam na produção de games para muito além do entretenimento, propondo videogames que misturem mecânicas tradicionais e conhecidas com plataformas de promoção de mudanças sociais. Pensar em um jogar subversivo – uma experiência sinestésica mediada por um ambiente digital engajador, no qual o desenvolvedor e o público compartilham ideias que possam criar soluções e alternativas ao lugar comum – envolve não só um jogador dotado de pensamento crítico acerca de seu objeto de consumo, mas principalmente, criadores comprometidos com suas pautas. 

É necessário, portanto, que os desenvolvedores se posicionem sobre temas socialmente relevantes, finquem suas bandeiras, reforcem suas convicções e atuem de forma a construir ambientes que vão além da fruição tradicional dos videogames. Jogar e jogar de forma subversiva se distinguem por essa mudança de paradigma, na qual o contexto não é algo neutro e ligado apenas à fantasia, mas é construído a partir de bases sólidas e teorias sociais. A palavra que melhor define, nesse contexto, essa luta (dentro ou fora do jogo) e que une o universo dos games às causas sociais, é justamente essa: engajamento. 

Seria interessante que pesquisadores e criadores de jogos digitais incentivassem em suas pesquisas, para além do desenvolvimento, uma ação constante, passando pela reflexão teórica, prática, técnica e, mais importante, pela reflexão sobre o próprio fazer e sobre o impacto desse fazer nas outras pessoas. 

Práxis crítica e engajamento coletivo

Como jogo também é prática (do grego práxis, uma ação que envolve consolidação de um saber, muitas vezes sinônimo de um saber técnico) é importante salientar que o pensamento é uma ferramenta – apesar de abstrata – e é necessário praticá-lo para consolidarmos seu pleno domínio. A prática do jogar é baseada na progressão através de novos desafios, com diferentes graus de dificuldade, desenvolvendo aos poucos novas habilidades e envolvendo cada vez mais o jogador no universo do game. A este envolvimento baseado principalmente em desafios, damos o nome de engajamento, palavra utilizada amplamente para descrever também a participação ativa em assuntos de grande relevância social. Em ambos os casos, a prática constante auxilia na próxima fase, que nos videogames é sinônimo de um local – ou momento – no qual as dificuldades, de forma gradual ou abruptamente, se elevam e demandam o emprego de maior energia física e mental para sua superação. Na luta social, a prática nos coloca questionamentos, nos faz pensar  e vislumbrar estratégias e soluções para o enfrentamento às desigualdades.

Ser anti-racista exige mais energia e engajamento do que simplesmente não ser racista. Ser um jogador anti-racista é jogar uma próxima fase, que tem impacto na vida real, no dia a dia dos indivíduos. Práticas anti-racistas nos games são o mote, por exemplo, de um bundle – um pacote de projetos finalizados e protótipos de diversos criadores e empresas unidas por uma causa – lançado na plataforma Itch.io

Chamado de Pacote para Justiça e Igualdade Racial (Bundle for Racial Justice and Equality, no original em inglês), o projeto coletivo contou com mais de 1.500 jogos – disponíveis para quem contribuísse com qualquer quantia de dinheiro, a partir de cinco dólares – e levantou mais de oito milhões de dólares que foram revertidos para um fundo ligado a educação e defesa pela igualdade racial (NAACP Legal Defense and Educational Fund) e outro para garantir fiança a pessoas de baixa renda (Community Bail Fund). No Brasil, o Videogames da Quebrada, organizado pelos desenvolvedores negros Tainá Félix e Jaderson Souza, também se engajou revertendo doações para famílias impactadas pela crise do Covid-19 na região de Pirituba, na Grande São Paulo.

Assim como o Pacote para Justiça e Igualdade Racial, o projeto Videogames da Quebrada, atuou em diversas camadas de engajamento. A primeira camada é o projeto em si: uma ação coletiva que disponibiliza jogos digitais finalizados e protótipos a valores simbólicos. Associar a prática do jogar a uma causa social e propor aos interessados que participem ativamente, não só comprando, mas também doando para famílias em situação de vulnerabilidade, já é o início de um diálogo frutífero para todos os envolvidos. Em camadas ainda mais intrincadas, os jogadores passam a atuar entre o mundo real e o ambiente virtual, já que a grande maioria desses games possui temáticas que subvertem as ordens e narrativas dominantes (especialmente as narrativas de pessoas brancas, cis, heteronormativas e, na sua grande maioria, masculinas). E todas essas camadas sobrepostas criam um jogar subversivo com potencial transformador para quem se engajou nessas iniciativas.

Criando coletividades

Imagem de pessoa utilizando um joystick para jogar | Foto: Jaderson Souza

De onde vem a mudança? No caso dos games que fomentam a prática crítica, a resposta – ou pelo menos uma das respostas possíveis – talvez seja o pensamento de coletivo. Desenvolvedores, pesquisadores, artistas, educadores, ativistas, jogadores, curiosos e aliados estão todos no mesmo nível, em camadas diversas de atuação e com conhecimentos complementares partilhando saberes.

Esse processo horizontal pode ser visto nos diversos encontros de desenvolvedores independentes que se difundem no país. A multiplicidade de temas, objetivos, públicos e interesses é o que mais chama a atenção nesse bioma criativo. Há encontros tradicionais na cena de desenvolvimento paulistana, como é o caso do SPIN, que, desde 2013, promove visibilidade aos videogames independentes, e festivais de renome internacional como o BIG (Brazil Independent Games Festival), ambos focando mais em negócios e contatos profissionais. 

Podemos também encontrar iniciativas mais engajadas como é o caso da Festa da Firma Gamedev, evento casual que evidencia faceta artística e social dentro do universo dos jogos, ou do DevMigas+, encontro focado na inclusão de mulheres cis, pessoas trans e não-binárias no desenvolvimento de games. Ambos os eventos são desenvolvidos pela Firma Gamedev, que também organizou, em 2019, o festival Firmeza Fest, promovendo o lado criativo e educativo dos desenvolvedores. Além desses encontros e festivais, podemos citar ações como o Glitch Mundo, uma rede aberta que une coletivos e organizadores de eventos de jogos digitais e artes e fomenta a criação de novas organizações locais. A rede promove o festival Glitch Festa, entre várias outras iniciativas Brasil afora.

Essas coletividades se unem e se entrelaçam em dinâmicas que refletem interesses de um número cada vez mais crescente de criadores, jogadores e simpatizantes. O fato de não ser um monolito de opiniões é um dos melhores sinais de que os games no Brasil (assim como em outros países) são um reflexo de uma sociedade plural. A prática crítica é eco das questões contemporâneas e o jogar subversivo uma necessidade atualíssima.

*Anita Cavaleiro é mestra em Artes Visuais pela ECA/USP e docente no ensino superior. Sua pesquisa se dá especialmente em jogos experimentais independentes e na criação de comunidades de desenvolvedores, focando na relação entre os games e a educação formal e não-formal. Atualmente é educadora do Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) do Sesc 24 de Maio.

*Enio Rodrigo B. Silva é mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (PGEHA/USP) e especialista em Jornalismo Científico e Divulgação da Saúde pelo Labjor/Unicamp. Atualmente trabalha como animador cultural do Sesc 24 de Maio em São Paulo.

Na quinta-feira, dia 6 de agosto, a série Idéias, no canal do Sesc São Paulo no YouTube, transmite ao vivo, às 16h, o debate Um jogar subversivo: game design como prática crítica, com Tainá Felix, produtora de jogos digitais e arte-educadora e Beatriz Blanco, professora universitária e pesquisadora da área de game design. A mediação será de Anita Cavaleiro e a apresentação, de Sabrina da Paixão, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

Atualização: o debate gravado está disponível aqui.

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.