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Perigo na rede

Imagens: Editoria de Arte
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Assunto sério e cada vez mais discutido em casa e nas escolas, as agressões sofridas por crianças e adolescentes na internet, conhecidas pelo nome de cyberbullying, ganharam maior evidência com a pandemia. Antes mesmo da necessidade de restrição social e fechamento das unidades de ensino públicas e particulares, dados de uma pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 30 países, e divulgada em 2019, apontaram que, no Brasil, 37% do grupo formado por crianças e adolescentes afirmaram ter sido vítimas de ataques online. Neste cenário, as redes sociais foram relatadas como o espaço onde mais ocorrem casos de violência entre jovens no país, que, segundo o Instituto de Pesquisa Ipsos, está em segundo lugar no ranking dos países com mais casos de cyberbullying contra crianças e adolescentes. “A vida social, em alguma medida, se transportou para a internet e, infelizmente, pensar em vida social é ter de considerar também conflitos e violências. Nesse sentido, aumentar o acesso à internet e às redes sociais reforçou uma prática de violência que já estava posta em debate há algum tempo, refiro-me ao cyberbullying”, observa a antropóloga Fernanda Martins Sousa, coordenadora da área de desigualdades e identidades do InternetLab, e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da Universidade de São Paulo (Numas-USP). Nesse contexto, de que forma impedir e penalizar agressores? Para o jornalista e mestre em Tecnologia e Sociedade Guilherme Alves, “a Lei nº 13.185/2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), foi um importante passo no sentido de envolver toda a sociedade no combate a esse tipo de violência”, que inclui a internet como um dos meios de prática. Coordenador de Engajamento de Jovens na Safernet Brasil (associação civil com foco na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Internet no Brasil), Guilherme acredita que “precisamos fortalecer nas atividades escolares remotas discussões sobre comportamentos positivos e estratégias educativas de prevenção à violência”. Neste Em Pauta, Fernanda Martins Sousa e Guilherme Alves compartilham dados, reflexões e metas a respeito.

 

 

Descortinamento de fragilidades estruturais

Fernanda Martins Sousa

A pandemia da Covid-19 lançou luz sobre problemas relacionados à desigualdade que já estruturavam a sociedade brasileira, mas que, em alguma medida, ficavam invisibilizados, abrindo pouco espaço para questionarmos algumas dinâmicas. No campo da educação, o fechamento de escolas e a necessidade de aulas à distância foram dois fatores que descortinaram a exclusão digital de parte das crianças e adolescentes brasileiros. Isso porque a necessidade de aulas online trouxe à tona um grande problema: a falta de acesso à internet de parte considerável da população.

Esse primeiro problema já demarcava um ponto essencial: as infâncias e as adolescências brasileiras são múltiplas, não sendo possível pensar nessa parcela da população sem considerar questões de gênero, raça, sexualidade, regionalidade e classe social. É exatamente para esses marcadores que aponta a pesquisa realizada pela TIC Kids Online 2019, na qual temos a informação de que 4,8 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos, isto é, 17% dessa população, residem em moradias sem internet no Brasil.

Entre os 17%, os que não acessam a internet de forma alguma chegam a 11%, sendo que a exclusão é de 25% entre crianças e adolescentes que residem em ambientes rurais. O índice é maior também nas regiões Norte e Nordeste, onde temos 21% de crianças e adolescentes sem acesso; e, quando consideradas as moradias das classes D e E, o valor é de 20%. Além disso, entre aqueles que possuem internet, muitas vezes, o único acesso que se têm é a rede de 3G, limitando as atividades online.

 

Cresce a vulnerabilidade

Essa demarcação de desigualdade regional e de classe social torna-se ainda mais importante no contexto da pandemia, pois a internet se tornou um espaço crucial para que relações sociais se estabeleçam, o que significa, inclusive, ter acesso pleno à educação. É preciso dizer, no entanto, que se, por um lado, encaramos o problema de falta de acesso à internet, por outro lado, estamos diante do aumento da vulnerabilidade de crianças e adolescentes que passam mais tempo conectados.

Nos domicílios onde há acesso à internet, a maior parte das atividades tem ocorrido online. Aulas, conversas, lives e até mesmo festas de aniversário. A internet se colocou, então, como uma válvula de escape para quem estava ou está vivendo o isolamento social. Essa válvula, no entanto, não desfez um elemento que se tornou uma preocupação crescente entre pais e professores: o aumento da exposição das crianças e adolescentes às práticas violentas que acontecem por intermédio da internet. Essa é uma preocupação bastante legítima.

A vida social, em alguma medida, se transportou para a internet e, infelizmente, pensar em vida social é ter de considerar também conflitos e violências. Nesse sentido, aumentar o acesso à internet e às redes sociais reforçou uma prática de violência que já estava posta em debate há algum tempo, refiro-me ao cyberbullying.

Assim como o “bullying”, o “cyberbullying” é uma categoria guarda-chuva que busca incluir violência verbal, simbólica, tentativas de envergonhamento e silenciamento de crianças e adolescentes compreendidos, geralmente, por seus colegas de classe, como “fora dos padrões”.

Se o bullying já indicava a necessidade de enfatizar, nas práticas educativas, o respeito às diferenças, o cyberbullying traz a mesma demanda de forma ainda mais urgente. Pois, na internet, a potência dessa ação violenta pode ganhar contornos ainda mais vívidos, alcançando lugares inimagináveis.

 

A RESPONSABILIDADE DE ENCARAR O PROBLEMA DO BULLYING

E DO CYBERBULLYING PASSA NECESSARIAMENTE PELO TRABALHO

DE COLOCAR AS DIVERSIDADES CONSTITUTIVAS DOS SUJEITOS

COMO PARTE CENTRAL DA EDUCAÇÃO

 

 

Quem é alvo?

É importante apontar que, de acordo com pesquisa feita pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 30 países, divulgada em 2019, a cada três crianças e adolescentes um já foi vítima de cyberbullying. No Brasil, 37% das pessoas que participaram da pesquisa disseram já ter sido vítimas desta prática.

Outra pesquisa de 2018, realizada pelo Instituto de Pesquisa Ipsos, revelou que o Brasil está em segundo lugar no ranking de países que têm casos de cyberbullying contra crianças e adolescentes.

Aqui, há novamente um ponto que necessita ser sublinhado. Assim como a internet tem significados diversos para essa população, quando pensamos no cyberbullying, é preciso ter em mente quem são os estudantes lidos como “fora dos padrões”. Em muitos casos, falamos de crianças e adolescentes que não se encaixam naquilo que é entendido como “normas sociais”, ou seja, trata-se de crianças e adolescentes negros, que performatizam o gênero de uma forma que destoa do que é entendido como “natural”, de classes sociais mais pobres, de pessoas com deficiência e, em alguns casos, de adolescentes LGBT+.

Nomear alguns dos grupos sociais que são alvos do cyberbullying é essencial para compreendermos que, por ser uma categoria guarda-chuva, muitos dos preconceitos sociais que são estruturantes da nossa sociedade se enquadram nesse tipo de comportamento. Nesse sentido, a compreensão de que as infâncias e as adolescências são múltiplas deve ser levada em consideração quando estamos diante das formas diversas como adolescentes e crianças se constituem enquanto sujeitos.

Além disso, como pudemos notar, o bullying e o cyberbullying são praticados contra grupos específicos e são perpetrados por sujeitos que conhecem e convivem com estes estudantes. Não falamos, portanto, de ataques que se originam no convívio com pessoas desconhecidas. Sendo assim, o cyberbullying só pode ser combatido com o envolvimento de familiares, professores e estudantes. Nesse processo, é preciso compreender que os estudantes não são apenas agentes passivos dessas situações, eles também podem produzir materiais e discursos que combatam a prática abusiva.

 

Diferenças em pauta

Compreendo, assim, que a responsabilidade de encarar o problema do bullying e do cyberbullying passa necessariamente pelo trabalho de colocar as diversidades constitutivas dos sujeitos como parte central da educação. Não é suficiente, por exemplo, que falemos sobre desigualdades de gênero apenas no mês de maio ou de consciência negra em novembro. Do mesmo modo, precisamos abrir espaço para as crianças mais tímidas, para adolescentes que não acham que seus corpos se encaixam no padrão de magreza e para estudantes autistas a fim de que possam encontrar espaço para expressar suas experiências.

Estamos, portanto, diante de problemas que trazem à tona a necessidade de oferecer, seja materialmente, como no caso da internet, seja intelectualmente, como no caso de uma educação que se paute pela diferença, uma educação mais equânime. Isso significa, por um lado, o oferecimento de internet e educação digital para os estudantes que não as possuem. Por outro lado, significa que é preciso educar crianças, adolescentes, professores e até mesmo a família para que estejam preparados para lidar com situações violentas. Por fim, é importante perceber que ambas as situações — a falta de acesso à internet e o cyberbullying – não são novidades da pandemia. Na verdade, elas indicam fragilidades que, desde muito antes, se colocavam como estruturais na sociedade brasileira.

Fernanda Martins Sousa é doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestra em Antropologia Social e bacharela/licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas-USP) e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp); também é coordenadora da área de desigualdades e identidades do InternetLab – centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove o debate acadêmico e a produção de conhecimento nas áreas de direito e tecnologia, sobretudo no campo da internet.

 

 

 

Um chamado para a conversa

Guilherme Alves

Com o fechamento das escolas e o distanciamento social impostos pela pandemia da Covid-19, grande parte das crianças e adolescentes com acesso à conexão digital passou a ficar mais tempo em frente a telas de smartphones e computadores. É verdade que a internet mostrou-se uma aliada para que elas e eles mantivessem o contato com familiares e amigos, e mesmo criassem uma nova rotina de aprendizagem com atividades escolares remotas. Também é fato, no entanto, que educadores e famílias têm se preocupado ainda mais quando o assunto é o cyberbullying — a violência online sistemática — entre esse segmento populacional.

O cyberbullying já é tópico central no debate sobre educação desde antes da pandemia. A Lei nº 13.185/2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), foi um importante passo no sentido de envolver toda a sociedade no combate a esse tipo de violência, principalmente adotando estratégias de educação e integrando as instituições que fazem parte do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente nos termos da Resolução 113, de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

No âmbito da lei, o bullying é “todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas”. O cyberbullying é a intimidação ocorrida na rede e que afeta a saúde emocional de crianças e adolescentes tanto quanto as violências ocorridas offline — afinal, cada vez mais essas duas dimensões da nossa realidade estão mais misturadas.

Entramos na pandemia com um cenário no qual quase metade das crianças e adolescentes brasileiras viram alguém ser discriminado na internet no último ano. Com dados coletados entre outubro de 2019 e março de 2020, a Pesquisa TIC Kids Online 2019, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br)/Comitê Gestor da Internet no Brasil (2019), aponta que as mais frequentes formas de discriminação testemunhadas são “por cor ou raça” (26%), “aparência física” (21%), “por gostar de pessoas do mesmo sexo” (15%) e “pela religião” ou “por ser pobre” (ambos em 11%). Não é surpresa ver que essas violências refletem questões estruturais sérias de nossa sociedade, como o racismo, a LGBTfobia e mesmo a desigualdade de gênero – já que são as meninas as mais afetadas.

 

Denúncias online

O Relatório de Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças 2020, lançado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em junho passado, lembra que os padrões de denúncia de abuso infantil, incluindo o cyberbullying, têm variado entre países durante a pandemia. Enquanto alguns, como China, França, Índia e África do Sul tiveram aumentos substanciais nos atendimentos de canais de ajuda, Filipinas e EUA tiveram baixas — que podem, na realidade, ser causadas pela dificuldade de acesso a redes de apoio tradicionais, como as próprias escolas. O relatório também enfatiza que os efeitos a longo prazo das medidas de contenção da pandemia ainda deverão ser estudados, e isso inclui os padrões de violência entre crianças e adolescentes.

No Brasil, entre 1º de março e 1º de dezembro de 2020, a Safernet Brasil atendeu 179 pedidos de ajuda de crianças e adolescentes que sofreram cyberbullying. O Canal de Ajuda é um serviço gratuito de acolhimento anônimo que oferece apoio a vítimas de violações de direitos humanos na internet e que, desde sua criação, em 2007, tem como principal público atendido pessoas abaixo de 18 anos.

O número de atendimentos por cyberbullying de 2020 é menor do que o registrado no mesmo período do ano passado (253), um impacto que pode ser explicado, entre outros motivos possíveis, pelo fechamento das escolas e suspensão das aulas, como também apontado pelo Unicef. Entretanto, vale destacar um aumento significativo nos indicadores gerais da Safernet Brasil sobre denúncias de páginas na Web e perfis em redes sociais que cometem crimes cibernéticos.

A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos (denuncie.org.br), que recebe e encaminha possíveis crimes virtuais às autoridades, registrou crescimento em quase todos os indicativos este ano, sendo pornografia infantil o tópico mais denunciado (73 mil notificações, 104,9% a mais do que em 2019), seguido de apologia e incitação a crimes contra a vida (9.579 notificações, aumento de 81,7%).

 

O CAMINHO DA EDUCAÇÃO, ENVOLVENDO ESCOLAS, FAMÍLIAS,

AUTORIDADES E AS PRÓPRIAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

AINDA É A MELHOR PREVENÇÃO

 

 

Canais de ajuda

Apesar do crescimento visto nesses últimos dados, não é possível afirmar, de antemão, que o ambiente virtual tornou-se mais violento, e sim que mais pessoas têm procurado os canais de ajuda. Sabemos que o compartilhamento não autorizado de imagens íntimas e a apologia ao suicídio são algumas das facetas do cyberbullying entre adolescentes. Por isso, esses dados reforçam a importância de mantermos as redes de apoio psicológico e social atuantes e presentes, mesmo que remotamente, para este público.

Além disso, está explícito que precisamos fortalecer nas atividades escolares remotas discussões sobre comportamentos positivos e estratégias educativas de prevenção à violência. Principalmente como forma de proteger crianças e adolescentes em um contexto no qual eles e elas estão ainda mais conectados.

Grupos de mensagens, redes sociais, plataformas de jogos e mesmo salas de videoconferência tornaram-se os principais espaços de convivência entre crianças e adolescentes durante o distanciamento social. É necessário, claro, assegurar que adolescentes infratores e seus responsáveis sejam legalmente responsabilizados em casos de violências mais graves ocorridas nesses espaços, como o compartilhamento de imagens íntimas não autorizadas e ameaças.

 

Cidadão digital

Ao longo do segundo semestre de 2020, a Safernet Brasil aceitou o desafio de atuar diretamente nessa questão. O programa Cidadão Digital, realizado no ano passado com apoio do Facebook, foi pensado para impactar positivamente adolescentes de 13 a 17 anos de escolas públicas de todo o país com uma série de atividades remotas, incluindo a prevenção ao cyberbullying. Antes, tivemos um processo de formação e seleção de 15 jovens embaixadoras e embaixadores, de todas as regiões do país, que então passaram a atuar com escolas e ONGs para apoiar educadores e estudantes que, no contexto da pandemia, viram-se sobrecarregados, com dúvidas e mesmo desestimulados.

De agosto até o final de 2020, foram mais de 922 horas de atividades, que impactaram mais de 97 mil estudantes e 61 mil educadores de 19 estados. Com a mentoria da Safernet Brasil, as embaixadoras e os embaixadores tiveram liberdade para propor dinâmicas, conteúdos e roteiros que coloquem adolescentes no centro do debate. O diálogo entre pares, defendido como metodologia, tem evidenciado seu valor entre os mais de 10 mil feedbacks.São histórias de adolescentes que vivenciaram violências e que se sentem seguras e seguros para compartilhar histórias relacionadas ao bullying e o cyberbullying, inclusive ocorridos nestes meses de pandemia.

E, ao envolver educadores nesse processo, também os convidamos para exercitar a escuta ativa e receber apoio em um contexto de incertezas sobre como agir ao presenciar violências nas atividades remotas.

Respeitar as experiências e as opiniões de adolescentes tem sido uma das lições mais valiosas do Cidadão Digital, inclusive para que possamos, verdadeiramente, orientá-las e orientá-los a buscar ajuda e quebrar o ciclo de silêncio de agressores, vítimas e espectadores ao redor do cyberbullying. Ainda veremos dados específicos sobre a violência sistemática online durante a pandemia, inclusive porque o retorno integral das aulas presenciais no Brasil é uma incógnita. Entendemos que o caminho da educação, envolvendo escolas, famílias, autoridades e as próprias crianças e adolescentes ainda é a melhor prevenção.

Guilherme Alves é jornalista, mestre em Tecnologia e Sociedade e coordenador de Engajamento de Jovens na Safernet Brasil. O artigo contou com a colaboração de Amanda Costa, estudante de Relações Internacionais e embaixadora do programa Cidadão Digital em São Paulo.

 

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