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Sombras no paraíso


Paisagem do arquipélago / Foto: Juliana Borges

Pousadas domiciliares de Fernando de Noronha lutam para manter espaço

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO e JULIANA BORGES

Responsável, desde 1988, pela gestão do arquipélago de Fernando de Noronha, o estado de Pernambuco escolheu, em abril passado, um novo administrador-geral para o local. Nomeado pelo governador Jarbas Vasconcelos, Edrise Ayres, ex-presidente da Companhia Pernambucana de Meio Ambiente, terá durante seu mandato de lidar com uma série de problemas que vêm ameaçando a economia e a cultura dos moradores locais.

O acesso à ilha de Fernando de Noronha – a maior e única habitada no arquipélago de mesmo nome –, que sempre foi controlado, teve de ser restringido ainda mais no ano passado, devido a uma carência estrutural: falta de água. Por isso, desde outubro de 2002 a entrada ficou limitada a 180 pessoas por dia, o que representou uma redução de cerca de 20% em relação ao número de visitantes permitido anteriormente.

Entretanto, essa não foi a única nem a maior mudança pela qual o turismo em Noronha passou nos últimos tempos. A partir de 1998, ano em que o antigo administrador-geral, Sérgio Salles, assumiu o cargo, viu-se ameaçada uma das marcas registradas da ilha: as pousadas domiciliares – residências de moradores ampliadas e adaptadas para receber turistas. Salles abriu a economia local para investimentos de fora e, aos poucos, vêm sendo construídas hospedarias maiores, mais bem estruturadas, que, além de não empregar mão-de-obra noronhense, concorrem diretamente com as que já existem. Essa iniciativa, mais do que criar uma nova identidade na ilha, incompatível com a realidade local, atropela os interesses e as necessidades dos moradores. É contra esse quadro que os ilhéus esperam que caminhe a nova administração.

Destino de degredados

A notícia da independência do Brasil levou dois anos para chegar a Fernando de Noronha, que até então reproduzia fielmente a história brasileira. De 1503, quando foi descoberto, a meados do século 18, o arquipélago viveu a mesma situação de abandono que o país, sujeito aos mandos e desmandos de viajantes, piratas e aventureiros europeus. Assim como a porção continental do território brasileiro, sofreu invasões de ingleses, franceses e holandeses. Durante esse período, não mereceu a atenção de nossos descobridores, que só vieram a ocupar definitivamente o local em 1737.

Até 1940, além dos militares e viajantes, a ilha de Fernando de Noronha foi habitada apenas por presos, comuns e políticos. "Foi nessa época que lá chegou a primeira população civil livre, o núcleo fundador da sociedade noronhense", explica Janirza Cavalcante, antropóloga que defendeu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2000, tese de doutorado sobre a ocupação e o povoamento da ilha e o impacto do turismo sobre os moradores locais.

Em 1987, Fernando César de Mesquita tomou posse como o primeiro administrador civil da história de Noronha e, segundo a antropóloga, transformou a ilha num verdadeiro "canteiro de obras" para a implantação de infra-estrutura destinada especificamente ao desenvolvimento do turismo.

Paralelamente a essa abertura, começava o endurecimento da legislação ambiental no local. Em 1986, Fernando de Noronha tornou-se Área de Proteção Ambiental (APA) federal. Dois anos mais tarde, a maior parte da APA foi transformada em Parque Nacional Marinho (Parnamar), do qual atualmente fazem parte cerca de 75% do arquipélago. O restante permanece como área de proteção, onde é permitida a ocupação.

As restrições ambientais, somadas ao espaço físico limitado e ao alto custo da construção civil no local, determinaram, a partir do início da década de 90, o que seria o modelo da exploração turística na ilha: a pousada domiciliar. Com o aumento do afluxo de visitantes, os moradores encontraram em suas próprias casas uma nova fonte de renda. Muitos ampliaram suas residências para transformar alguns quartos em suítes e, hoje, segundo a Associação dos Pousadeiros, os 108 estabelecimentos domiciliares existentes absorvem a maioria dos turistas.

Medidas "estruturadoras"

Nos últimos cinco anos, porém, a atividade turística ganhou novas diretrizes. Incentivado pelo governo, o capital de fora chegou à ilha e, aos poucos, está descaracterizando o estilo rústico, informal e caseiro das instalações noronhenses. Essa situação trouxe incerteza aos pequenos pousadeiros, diante da possibilidade de não resistir à concorrência com os grandes e, assim, perder aquela que se tornou sua única fonte de renda. "A exploração auto-sustentável de Noronha tem de ser voltada para a comunidade local", diz Domício Cordeiro, presidente da Assembléia Popular Noronhense, ONG que defende os interesses dos ilhéus.

A partir de 1998, o investimento do governo em estabelecimentos domiciliares, que nunca foi grande, passou para segundo plano, o que gerou insatisfação dos pequenos pousadeiros e abriu uma grave crise entre eles e a antiga administração. Hospedarias maiores, mais luxuosas e que empregam mão-de-obra de fora, como o Hotel Dolphin, inaugurado em 1999, e a Pousada do Zé Maria, que foi reformada e reaberta em 2000 com 11 bangalôs e cobra diárias de R$ 550 por casal, passaram a ser prioridade nos planos do governo pernambucano.

"Pousadas são as nossas, que são simples e dão o sustento para o pessoal que mora aqui. Hotéis grandes e um turismo de porte médio não favorecem nem a nós, nem ao arquipélago", queixa-se João da Rocha Amorim, há 12 anos proprietário da Pousada do Dandão.

A demonstração mais evidente da nova cara do turismo em Noronha – e por isso também alvo das maiores polêmicas – é a Pousada Maravilha, badalada antes mesmo de ser inaugurada. A construção está localizada no terreno que o ex-diretor do Parnamar, José Galdêncio Filho, recebeu da administração para instalar sua residência, com vista para a baía do Sueste. Em sociedade com os irmãos João Paulo e Pedro Paulo Diniz, o apresentador Luciano Huck e o empresário Ed Sá Sampaio, Galdêncio está erguendo oito bangalôs de luxo para receber famosos e endinheirados. A obra, que já foi embargada por duas liminares, sofreu também autuação por estar em área de proteção permanente e derrubar vegetação nativa. A inauguração da Pousada Maravilha está prevista para este ano. Procurado pela reportagem de Problemas Brasileiros, José Galdêncio não foi localizado.

Construção de resorts

Os desentendimentos em torno das propostas do plano diretor de Noronha, elaborado em 1998, são um bom exemplo da luta política que se travou entre os pousadeiros e a antiga administração. O projeto inicial do governo, descartado depois de receber duras críticas da oposição, previa a construção de três "pousadas estruturadoras" – que, apesar do nome, se aproximam muito mais de um hotel do que de uma pousada –, com 48 suítes cada, dez "pousadas médias", com 20 suítes cada – mais ou menos nos moldes da Pousada do Zé Maria –, e a elevação do número de estabelecimentos domiciliares para 120.

Diante de tais propostas, não é difícil entender por que o plano diretor foi tão ferozmente combatido pelos habitantes locais. "Construir resorts aqui significa centralizar o poder econômico da ilha, e isso nós não queremos", diz Otávio Minervino Filho, presidente da Associação dos Pousadeiros de Fernando de Noronha. "Por que não abrir para a concorrência interna? Trazer pessoas de fora fere o direito dos ilhéus", afirma Mauricio Barbosa, vice-presidente da Assembléia Popular Noronhense, que é também proprietário da Pousada Ocean Atlântica e fiscal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O ex-administrador-geral do arquipélago rebate as críticas ao plano diretor: "A oposição à construção de hotéis acontece por puro interesse econômico de alguns. O objetivo é evitar a concorrência ao Hotel Esmeralda", afirma Sérgio Salles, referindo-se ao estabelecimento mais antigo desse tipo na ilha, em funcionamento desde 1987, e cuja propriedade é dividida por cotistas, entre eles Mauricio Barbosa e Domício Cordeiro.

A forte resistência dos moradores fez com que o plano de expansão do turismo em Fernando de Noronha e a construção dos resorts fossem suspensos do plano diretor. De acordo com Edrise Ayres, o projeto não será retomado na sua gestão: "Esse assunto já foi superado. Acredito que, enquanto não houver melhoria no uso dos recursos naturais, é temeroso pensar em expandir a capacidade hoteleira da ilha", afirma.

Ainda assim, Ayres pretende manter a linha de trabalho de seu antecessor. "Sérgio Salles realizou um trabalho duro para profissionalizar e desenvolver o turismo na ilha. Quero dar continuidade a sua administração. Quem conheceu a ilha antes de sua gestão pode verificar que houve uma melhoria considerável dos serviços básicos", completa ele.

Poder castrado

Atualmente, o governo de Pernambuco exerce em Fernando de Noronha o mesmo papel político que a Coroa portuguesa em relação ao Brasil durante o período colonial. Desde que foi descoberto, o destino do arquipélago foi ditado por holandeses, franceses, portugueses e, agora, por pernambucanos – nunca noronhenses. Esse "paraíso" composto por 21 ilhas, separadas da costa por mais de 300 quilômetros de oceano, recebeu apenas os ecos do grito de independência do Brasil, uma vez que nunca pôde ter um governo próprio e autônomo.

Essa subordinação é fonte de crítica por parte dos moradores locais. A única forma de participação política possível aos cidadãos noronhenses se dá por meio do Conselho Distrital, constituído por sete membros eleitos por voto direto. O órgão tem poderes de fiscalização, mas está impedido, assim como o administrador, de qualquer ato legislativo. "Os conselheiros são chamados por nós de ‘vereadores castrados’ ", ironiza Domício Cordeiro.

Além disso, existe um verdadeiro conflito de jurisdição em Fernando de Noronha. Como o Parnamar ocupa a maior parte de sua área, o arquipélago é regulado, indiretamente, pelo governo federal, através do Ibama. Pertencem também à União todas as terras da ilha, cujo direito de posse e ocupação, que só pode ser atribuído a moradores locais ou seus cônjuges, é determinado pela administração. Pernambuco concentra as funções executivas e legislativas. As decisões referentes à APA são de responsabilidade da administração geral.

Para simplificar esse quadro, o deputado federal Fernando Gabeira elaborou, em 1997, um projeto de lei que instauraria um plebiscito em que os ilhéus decidiriam se Fernando de Noronha deveria, novamente, tornar-se território federal. A proposta, no entanto, foi arquivada. Na realidade, os anseios dos noronhenses, insatisfeitos com a dependência de Pernambuco, vão além da federalização do arquipélago. "Vejo a municipalização como o melhor caminho para a autonomia da ilha", diz Domício Cordeiro. Essa alternativa é factível, uma vez que, apesar da subordinação política, Noronha tem independência financeira e tributária.

Entretanto, na opinião de Sérgio Salles, o ideal é que o sistema permaneça como está. "Deixar uma pessoa da comunidade gerir um Patrimônio da Humanidade é uma responsabilidade muito grande. Se não houver uma gestão competente, quatro anos podem comprometer o meio ambiente", afirma o ex-administrador.

Nova identidade

Mesmo conseguindo, pelo menos por hora, se livrar dos resorts, Fernando de Noronha já sente os efeitos colaterais da chegada do capital de fora através do turismo. E, numa ilha onde quase 100% da população depende dessa atividade econômica, os impactos não se restringem à economia. A implementação de um novo modelo turístico está, progressivamente, descaracterizando o modo de ser dos ilhéus e fazendo com que seus costumes sejam substituídos pelos daqueles que vêm de fora. "Os habitantes de Noronha, por sua história e pelo espaço onde vivem, criaram uma identidade. Hoje, com um turismo feito de forma devastadora, verificamos uma perda de alguns aspectos culturais, seja na linguagem, seja no vestuário ou nos modos de expressão", analisa a antropóloga Janirza Cavalcante.

Os estudos da pesquisadora comprovam o que muitos dos moradores antigos já percebem. "Está sendo criada uma nova identidade em Noronha, completamente alheia à realidade local", afirma o major Antonio Brussolo, morador da ilha há 23 anos e proprietário, desde 1989, da Pousada Solar dos Ventos, uma das mais bem estruturadas. Esse é também o ponto de vista de Marco Aurélio Silva, que trabalha há 14 anos no Ibama. "Acho que aqui o turismo precisa ser rústico, para não descaracterizar os costumes dos habitantes locais", afirma.

Na opinião de Janirza Cavalcante, além das razões culturais, o ilhéu tem também um embasamento econômico para defender seus interesses. "O modelo domiciliar tem êxito, tanto que sustenta a ilha já há mais de uma década e está sendo exportado para o arquipélago de Galápagos, no Equador. Por isso, é justo e legítimo que o noronhense defenda com unhas e dentes seu espaço", declara a antropóloga. O presidente da Associação dos Pousadeiros afirma que a oposição às medidas da administração não visa impedir o desenvolvimento, mas defender o próprio sustento. "Queremos que a ilha cresça, mas de modo estruturado. Estamos insatisfeitos não com o surgimento de novas pousadas, mas com a forma discriminatória com que o antigo administrador tratava a questão", explica ele. Encerrada a gestão de Salles, resta aos ilhéus esperar que a administração de Edrise Ayres reverta essa tendência e possa aproximar os interesses dos moradores locais e do governo.

Quando Portugal ocupou o arquipélago, implantou, além de dois presídios e uma colônia correcional, dez fortificações pelos 17 quilômetros quadrados da ilha. Daquela época, permanecem, além das ruínas, os resquícios do rígido sistema de restrição que essas instituições representaram para a população noronhense, explica Janirza Cavalcante. Hoje, na figura dos grandes empreendimentos de turismo, os pousadeiros tradicionais vêem chegar uma outra ameaça a Fernando de Noronha, a mesma que se espalha pelo resto do Brasil – e que a nova administração deve combater. "Aqui não tem rico. O padrão social é moderado. Onde chega a riqueza, chega também a miséria", alerta Otávio Minervino.


Isolamento custa caro

Na ilha de Fernando de Noronha circula, extra-oficialmente, uma outra moeda. Além do real e do dólar, o "noronha" faz parte do comércio local. No câmbio fictício, essa "unidade monetária" equivale a R$ 2. Isso porque o alto preço do frete do navio ou avião faz com que mercadorias e produtos cheguem ao arquipélago custando duas vezes mais do que em Recife ou Natal. "O que o dinheiro compra no continente, aqui dá para a metade", reclama Mauricio Barbosa. Para se ter uma idéia, em 2000, o Banco do Nordeste abriu um financiamento de R$ 10 mil para 27 pousadeiros de Fernando de Noronha. "Descontados os impostos, com o restante não dá para fazer nem dois banheiros", garante Barbosa.

Além do alto custo de vida, o isolamento de Noronha causa um outro problema aos ilhéus: a falta de água. Como nos 17 quilômetros quadrados da ilha principal não há rios perenes, toda a população é abastecida pelo único açude do local, o do Xaréu. Durante a estação seca (verão), o fornecimento de água é racionado: a cada quatro dias, as bombas funcionam durante três horas, período que as pessoas aproveitam para encher seus reservatórios e garantir o suprimento de suas necessidades nos outros dias.

Para tentar minimizar o problema, a administração do arquipélago adquiriu, em 1999, um dessalinizador marinho. Se operasse com capacidade total, ele poderia dobrar a produção de água da ilha, que hoje é de 150 metros cúbicos por dia. Porém, até agora, embora já tenha consumido R$ 1,4 milhão (R$ 900 mil na compra e o restante em manutenção), o equipamento nunca funcionou realmente, e está apenas em teste.

Mesmo com o equipamento em operação, no entanto, o problema da água em Noronha estará longe de ser resolvido. Primeiro porque, durante a seca, que coincide com a alta temporada do turismo, a demanda excede a capacidade de fornecimento. Segundo porque o consumo cresce a cada dia, com o aumento da estrutura das pousadas existentes e com a construção de novas.

Para os donos dos maiores estabelecimentos, esse problema é contornável. Pior é a situação dos pequenos pousadeiros. "Os grandes se defendem muito bem do problema da água, pois podem comprar caminhão-pipa", queixa-se João Amorim, proprietário da Pousada do Dandão.

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