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E o vinho semeou a terra

Parreirais: o maior patrimônio agrícola de Bento Gonçalves / Foto: José Paulo Borges
Parreirais: o maior patrimônio agrícola de Bento Gonçalves / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

O rastelo encostado na parede e a roçadeira pendurada na janela são idênticas às ferramentas empregadas no passado por Armando Lerin no trato da terra. Nos fundos, meio empoeirados, estão velhos barris de madeira – pipas, como se diz por aqui – que nonno Armando, já falecido, utilizava na fermentação do vinho, tinto principalmente, produzido na pequena propriedade da família no povoado de São José da Busa, a 12 quilômetros do centro de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Na vindima (época da colheita), as uvas eram colocadas em balaios feitos com cipó e esmagadas com os pés. Logo após o esmagamento, as pessoas potchavam o pão no mosto (sumo da uva) acompanhado de muita polenta, salame, queijo e, claro, agradecimentos dos Lerin a Deus pelos bons frutos tirados da terra.

Em São José da Busa, o canto da corruíra, passarinho esperto e madrugador, tem a mesma sonoridade de sempre, assim como o talian, dialeto vêneto ouvido nas orações e ladainhas durante as missas rezadas uma vez por mês na capelinha do vilarejo. O parreiral que se avista da janela do porão onde estão as ferramentas e as pipas recebe o mesmo cuidado ancestral ditado por nonno Armando e transmitido ao filho Vitório, também já falecido. Leocir Lerin, 57 anos, neto de Vitório e bisneto de Armando, diz que a propriedade não produz mais que 15 mil garrafas de vinho por ano. “As pessoas chegam, provam, gostam e contam para os conhecidos. É a nossa propaganda.” Por ora, as garrafas de cabernet sauvignon, merlot, chardonnay e moscato giallo produzidos por Leocir e sua família não recebem rótulos.

Além de oferecer os vinhos e explicar como são feitos, Leocir gosta de mostrar a propriedade aos visitantes. “Quero construir uma pequena pousada ali, no alto do morro”, aponta. Em seguida, estica o olhar para a paisagem lá embaixo, com jeito de cartão-postal, e afirma: “Nossa tradição de vinicultores aqui na serra nunca vai acabar. Meu filho, Cristian, se formou em enologia e está incumbido de continuar a história da família. É a quarta geração.” Leocir fala que os Lerin amam o que fazem. “Para nós, cortar um pé de parreira é o mesmo que cometer um pecado.”

“Você está entrando no mundo do vinho.” Inscrita no pórtico em forma de pipa, com 17 metros de altura, erguido no acesso a Bento Gonçalves entre escarpas e vales da serra gaúcha, a 125 quilômetros de Porto Alegre, a frase não deixa dúvidas. No município a bebida oficial não é a cerveja gelada, muito menos a cachaça. Capital brasileira da uva e do vinho, aqui este reina absoluto. Para se ter uma ideia disso, em frente ao prédio da prefeitura municipal, num espaço do centro da cidade chamado Via Del Vino, a água que jorra do chafariz, conhecido por “La Fontana”, tem cor de vinho. Aliás, se existe um lugar em Bento – como os habitantes gostam de se referir à cidade – capaz de simbolizar o passado e o presente, é Via Del Vino. A vida social, política, cultural e econômica dos 112 mil habitantes se agita em torno desta via, um lugar amplo, com muitas flores e bastante verde, onde os prédios antigos ocupados pelos bancos e pelo comércio em geral, assim como as igrejas e o clube, têm suas histórias e o patrimônio preservados.

Bento Gonçalves teve início com a chegada das primeiras levas de colonos italianos ao Rio Grande do Sul, em 1875. Antes, a região era ocupada por índios caingangues, que foram expulsos por “bugreiros”, matadores de aluguel contratados com a missão de “limpar” a área e permitir a instalação dos imigrantes europeus. Fascinados pela propaganda que prometia uma terra de fartura no outro lado do oceano, lá vinham eles atrás do sonho de fazer a América, como resume os últimos versos de Mèrica, Mèrica, a canção do imigrante cantada em dialeto vêneto, sobre a aventura da América: “Mèrica, Mèrica, Mèrica/ Cosa serála sta Mèrica?/ Mèrica, Mèrica, Mèrica/ L’è un bei massolino de fior” – (“América, América, América/ O que será esta América?/ América, América, América/ Um belo ramalhete de flores”).

Sentimento de vergonha

Cartazes afixados no porto de Gênova, na Itália, de onde partiam os esperançosos retirantes, sugeriam que no Brasil a comida “caía do céu”. Nos folhetos, falava-se em transporte gratuito, além de hospedagem, ferramentas de trabalho, sementes, assistência médica, instrução para as crianças e crédito para a compra de um lote de terra. Habitantes de uma nação recém-unificada e que experimentava uma tumultuada transição do feudalismo para o capitalismo, os italianos do final do século 19 tinham bons motivos para acreditar em qualquer coisa que pudesse melhorar suas vidas. Eram camponeses despojados de suas terras, artesãos superados pelas máquinas, pobres e suas famílias numerosas amontoados nas cidades, sem nenhum sinal de melhoria de vida no horizonte. Então, milhares deles juntaram seus sonhos e foram fazer a América. A travessia do Atlântico, feita em vapores (na realidade, os imigrantes se acotovelavam nos porões das embarcações) durava quase um mês. Dormiam no chão e a comida era precária. A maioria dos autores de livros e trabalhos acadêmicos que abordam o assunto falam em alojamentos imundos, epidemias e mortes durante a viagem, mas não se conhece uma estimativa aproximada sobre o total de vítimas fatais que, invariavelmente, eram lançadas ao mar.

Muitas das mudas de uva que os italianos haviam trazido na bagagem secaram mesmo antes de desembarcarem no porto de Santos. As que sobreviveram não se adaptaram ao solo e acabaram morrendo. Sorte deles foi obter dos colonos alemães, cuja imigração começara em anos anteriores, a variedade Isabel, que cresceu sadia e vigorosa no sul do país. No início, os italianos cultivavam a uva e produziam o vinho apenas para o consumo da família. A bebida tinha um significado muito especial para essa gente. De acordo com as pesquisadoras Carolina Gheller Miguens e Marina Wöhlke Cyrillo, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, “muitos desses imigrantes passaram a vida economizando com a ideia de voltar à Itália, para beber novamente vinhos de qualidade superior”.

Aos poucos, as agruras dos tempos heróicos foram ficando para trás. Por volta de 1890, o êxito da variedade Isabel era tão surpreendente que os colonos iniciaram a comercialização do vinho na capital do estado e outras cidades gaúchas. O desenvolvimento das videiras contribuiu para que os imigrantes fincassem de vez suas raízes no Brasil. “A maior parte dos colonos, já começa a substituir as casas primitivas, de madeira, por lindas casas de pedra, grandes e espaçosas. As estrebarias também são melhoradas e as cantinas, tornadas mais confortáveis para guardar bons vinhos.” É assim que Giulio Lorenzoni descreve no livro Memórias de um Emigrante Italiano a vida dos colonos no início do século 20, em Bento Gonçalves.

Hoje, muitas daquelas moradias de pedra “grandes e espaçosas”, com cantinas onde se guardavam os bons vinhos da colônia, compõem o patrimônio arquitetônico e cultural de Caminhos de Pedra, o mais importante do município. De acordo com relato feito em 1884 por Pascoale Corte, cônsul italiano em Porto Alegre, na época o atual Caminhos de Pedra não passava de uma estradinha – “a mais pitoresca de todas” – que servia de ligação entre a colônia Dona Isabel (origem de Bento Gonçalves) e a colônia Caxias, conhecida como Linha Palmeiro. Neste local ermo havia um barracão onde os imigrantes italianos eram acolhidos provisoriamente.

Aos poucos, foram sendo erguidas ao longo da estradinha moradias rústicas mas sólidas, em pedra, madeira e alvenaria. Na década de 1970, com a mudança de traçado da rodovia que ligava Porto Alegre ao norte do estado, a Linha Palmeiro perdeu a importância. Nesse perío­do, a população chegou a desenvolver um certo sentimento de vergonha por morar em uma região pobre, em casas aparentemente toscas, e mesmo do sotaque carregado com expressões herdadas de um antigo dialeto italiano. Algumas famílias trataram de reformar as residências, cobrindo as pedras com alvenaria. Outros moradores puseram tudo abaixo e ergueram casas novas no lugar das velhas.

Vinho na argamassa

O patrimônio colonial parecia com os dias contados. No final da década de 1980, contudo, um levantamento do acervo arquitetônico de Bento Gonçalves constatou que o distrito de São Pedro (onde Caminhos de Pedra está localizado), “possuía o maior número de casas antigas que ainda conservam traços da cultura e da história dos imigrantes italianos”. Daí, à implementação de um projeto visando resgatar, preservar e dinamizar a cultura que aquela gente trouxe à serra gaúcha, foi um pulo. O plano era ambicioso, pois contemplava não só a preservação do patrimônio arquitetônico local, como envolvia também a arte, a língua, o folclore, assim como as habilidades profissionais dos homens e o talento das mulheres na cozinha. Em pouco tempo, o Projeto Cultural Caminhos de Pedra devolveu a autoestima à comunidade. De acordo com os idealizadores da mudança, “hoje as famílias que compõem esta comunidade têm orgulho de sua história e do patrimônio cultural por elas herdado”.

Pousada Cantelli, Restaurante Nona Ludia, Casa das Pequenas Frutas, Ateliê João Bez Batti, Capela Nossa Senhora Imaculada Conceição, Casa da Ovelha, Ferraria Mugnol, Casa da Erva-Mate. As atrações de Caminhos de Pedra não cabem nos dez dedos das mãos. Onde hoje existe a Casa da Erva-Mate, por exemplo, antigamente havia um moinho de trigo que fornecia à população farinha para a produção de pães, massas e biscoitos caseiros. No local, há uma roda de água utilizada na produção da erva-mate, matéria-prima do tradicional chimarrão gaúcho, hábito que os imigrantes italianos logo integraram aos seus costumes na nova terra.

O restaurante Nona Ludia oferece um almoço igual ao que era servido numa típica casa de imigrantes italianos. Na entrada, muito salame, copa, queijos e vegetais conservados no sal e no vinagre. Em seguida é servida a sopa de agnolini (ou capeleti), uma massa recheada cuja receita passa de geração a geração, e que tem presença certa nos almoços de domingo na casa das nonnas. Perto dali, a Pousada Cantelli, primeira hospedaria de Caminhos de Pedra, ocupa o mesmo espaço onde em 1878 foi erguida uma das casas pioneiras da Linha Palmeiro. Desse período a pousada guarda duas preciosidades: a imagem de Nossa Senhora encrustada no revestimento em madeira de uma das paredes do quarto do casal, e o guarda-comida embutido na parede de pedra da antiga cozinha.

Mais adiante, num casarão de madeira construído em 1917 onde durante muitos anos funcionou um hotel, fica a Casa da Ovelha. No porão, queijos, iogurtes e doces à farta feitos de leite de ovelha atiçam a gula dos visitantes. As atrações do local incluem tosquia dos animais, amamentação de cordeiros e até uma corrida de ovelhas. Já no interior da casa e em frente ao terreno onde o escultor João Bez Batti montou seu ateliê, por todos os lados estão espalhados trabalhos em basalto (pedra de origem vulcânica) concebidos pelo artista.

Não fosse o vinho, a Igreja das Neves dificilmente estaria firme e forte, na paisagem de tirar o fôlego do Vale dos Vinhedos – uma área de 81 mil metros quadrados que Bento Gonçalves compartilha com os municípios de Garibaldi e Monte Belo do Sul. Também não é por acaso que a cor da bebida se destaca na fachada da igrejinha. No início do século passado, era só uma capelinha coberta de scándole (tabuinhas de madeira), como diziam os colonos devotos da santa. Então os fiéis decidiram erguer uma capela nova, em alvenaria e com tijolos artesanais. Mas, durante a construção, faltou água por causa de uma grande estiagem e a obra teve que parar. Como todo mundo guardava nas cantinas boa quantidade de vinho de safras passadas, cada morador doou em média 300 litros da bebida. Misturado à palha de milho, o vinho foi a liga que uniu os tijolos. A obra ficou pronta em 1907. A presença de vinho na argamassa está relatada em documentos guardados na capelinha.

Spa do vinho

Na gastronomia, na música, no vinho, na arquitetura, no sotaque das pessoas, na tradição dos filós – nome dado aos encontros entre famílias nos bons e nos difíceis momentos da vida –, a cultura italiana sempre esteve presente. Tudo isso, porém, estava meio disperso, até que em 2002 a região recebeu a primeira Indicação de Procedência (IP) do Brasil, concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). A partir daí, os vinhos e espumantes aprovados puderam ostentar um selo, com numeração registrada naquele órgão, garantindo a procedência, o que ajudou a aumentar a produção em cerca de 30%. Era a providência que faltava para unir todos esses elementos e projetar a região. As vinícolas, grandes e pequenas, investiram com força em infraestrutura de recebimento, como restaurantes, hotéis, pousadas e salas especiais de degustação de vinhos e produtos típicos da região, como a mortadela, o salame e o queijo. Até um spa do vinho foi instalado num hotel de luxo. No local o cliente recebe, entre outros mimos, tratamento de vinoterapia, serviço contínuo de uvas frescas, chás e água aromatizada. Muitas vinícolas, por sua vez, apostaram na estratégia de manter os pais ou os avós (que na realidade são os próprios proprietários) nos balcões de varejo, só para conversar com os clientes. Os visitantes ficaram encantados e os resultados logo apareceram. Em 2007, o Vale recebeu 140 mil visitantes e, atualmente, mais de 300 mil turistas desembarcam por lá todos os anos. Hoje, a região é o principal destino de quem busca os prazeres da uva e do vinho no Brasil.

No Vale dos Vinhedos convivem tanto vinícolas familiares que produzem em torno de 40 mil garrafas anualmente, como empresas de grande porte que buscam espaços no mercado mundial de vinhos finos. São cerca de 450 propriedades de todos os portes dedicadas ao cultivo da uva, sendo que muitas remontam às origens da colonização italiana. Juntas, elas elaboram mais de 30 milhões de garrafas por ano. Embora expressivo em termos nacionais, esse número ainda é pouco significativo, considerando-se o mercado internacional. “O Brasil produz de vinhos finos por ano o mesmo que uma única vinícola de médio para grande porte do Chile e da Argentina”, constata Flavio Pizzato, enólogo da Vinícola Pizzato.

Uma ou outra vinícola mantém a prática da uva esmagada com os pés, mas só como mera curiosidade para encantar os turistas. No Vale dos Vinhedos definitivamente isso é coisa do passado. Hoje, antes de se transformar em vinhos e espumantes aprovados por paladares exigentes e premiados inclusive no exterior, a fruta passa por máquinas de última geração, em empresas de ponta equipadas com reluzentes tanques de aço inoxidável. O amadurecimento dos vinhos acontece em sofisticadas caves, onde o controle de temperatura e umidade são rigorosos. Eles descansam em barricas de carvalho francês ou americano, produzidas pelas melhores “tonelarias” internacionais. Nas caves, as garrafas são colocadas a mão, uma a uma, e por vezes o vinho chega a passar 60 meses em lenta maturação. Se vissem a que ponto chegou a cultura que eles ajudaram a introduzir no Brasil, nonno Armando Lerin e seu filho, Vitório, certamente ficariam surpresos.

Mas nem todo mundo se empolga com tanto avanço e sofisticação. “Estamos diante de muita tecnologia e pouca técnica, diz Luiz Henrique Zanini, enólogo da Vallontano Vinhos Nobres. “Tecnologia é algo que pode ser comprado e simplesmente aplicado depois, já técnica é o entendimento do processo completo de transformação do vinho na natureza”, opina. Zanini destaca que o vinho é arte e poesia, a expressão da sensibilidade de quem o produz. “De nada adianta mestrados e doutorados se perdermos nossa identidade”, afirma. Segundo o enólogo da Vallontano, a empresa elabora, aproximadamente, 45 mil garrafas de vinhos finos e espumantes por ano, o que é bem pouco comparando com a produção das grandes vinícolas. “O vinhateiro precisa ter contato físico com a uva e com os vinhedos. Diz que ele tem, literalmente, de colocar a mão na uva e no vinho.” Inspiração para o que diz e faz, Zanini foi buscar em Domaine de Montille, um dos mais consagrados produtores da mítica região de Borgonha, na França, onde o enólogo fez um estágio. Foi lá que ele entendeu o significado da frase de Galileu Galilei (“o vinho é composto de humor líquido e luz”) na qual o físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano desvenda o misterioso dom do vinho de alegrar e iluminar o coração dos homens.