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Roger Chartier - 70 anos, historiador francês

Foto: Adauto Perin
Foto: Adauto Perin

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Roger Chartier, historiador francês, especialista em história da leitura com ênfase nas práticas culturais, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e do Collège de France, nos concedeu esta entrevista durante sua visita a São Paulo onde esteve para uma série de palestras e cursos. Falar de si não foi fácil e, para tanto, Chartier recorreu a Bourdieu para justificar-se. A ilusão biográfica, a cultura e o envelhecimento foram temas deste encontro que aconteceu pouco antes de seu retorno à França.

Mais 60: Nós sempre iniciamos nossa conversa pedindo ao convidado para contar um pouco de sua história da sua vida, infância, família... Pode ser ficcional ou não (risos).

RC:  Bem, acabei de dar um curso sobre o sociólogo francês Pierre Bourdieu¹, e, em seu pensamento, há algo interessante que é chamar a atenção para a ilusão biográfica, pior, autobiográfica. Porque quando você pergunta a uma pessoa sobre sua história, a tendência natural, ainda assim, sem querer mentir ou inventar uma vida ideal, é falar sobre aquela que teria gostado de viver, diferente da vida que realmente tenha vivido. Há uma dupla tentação: aquela que narra a vida de forma que tudo se encaminha de uma maneira quase predestinada, para terminar no momento da autobiografia e, evidentemente, não corresponde à realidade da existência, em que as chances, encontros, oportunidades inesperadas, infelicidades, também inesperadas, que puderam acontecer. A segunda tentação da autobiografia é de falar de si como se fosse um indivíduo separado de um contexto, de pertencimento a uma geração, tudo que está de fato compartilhado em uma existência.  O gênero bibliográfico implica em dar-se de uma forma individualizada. Então, incorporando essas duas advertências, eu nunca falo de mim ou, pelo menos, é muito raro. Por que se interessa por isso? Por que você me perguntou isso?

¹Pierre Bourdieu (1930-2002). Sociólogo francês. Em seus trabalhos destacam-se as análises de como os indivíduos incorporam a estrutura social, legitimando-a e reproduzindo-a. RC refere-se ao artigo “A ilusão biográfica”, de Pierre Bourdieu, publicado em 1986. 

Mais 60: Bem, quando falamos de nós, falamos, também, de um recorte histórico, do que uma determinada geração compartilha. Assim, com essa pergunta queremos, justamente, contextualizar nossos leitores.

RC: Bem, então a pergunta poderia ser se existe uma relação entre meu trabalho, minha produção e elementos da minha história de vida. Há instrumentos que permitem decifrar essa possível relação entre a ação de uma pessoa – escrita, movimentos –, um olhar do exterior que torna mais fácil a percepção da relação entre os elementos de vida e o que poderia estar, se não na explicação, pelo menos, em um contexto para sua atividade artística, para sua obra, para justificar sua atividade política.

Mais 60: Então vamos iniciar pelo que já sabemos sobre sua infância em Lyon. Em outra entrevista você conta que era comum assistir a apresentações de óperas e que seu pai, por exemplo, assistiu vinte e cinco vezes a “Carmem”. Por esse relato entendemos que ir à ópera era tão comum como hoje é ir ao cinema. Tendo nascido em meados do século XX – em 1945 – já presenciou muitas mudanças culturais que se intensificaram após a Segunda Guerra Mundial.  Como percebe essas mudanças?

RC:  Sim,  ali eu falava de cultura popular, queria mostrar como em algumas cidades da França – Lyon, Toulouse – havia uma forma de lazer muito popular entre os artesãos – não a classe operária do mundo moderno mas, o mundo dos artesãos – que era assistir à ópera. Para quem olha da atualidade parece surpreendente, porque essa prática parece pertencer à elite social. Mas, a ópera fazia parte do lazer popular.  Este relato mostra essas transformações.

Mais 60: Como foi sua aproximação com a leitura? Esse prazer vem da infância? Foi propiciado por relações familiares?

RC: Veja, para mostrar como o que pensamos expressar de maneira original e singular já está, inconscientemente, formulado em um modelo de resposta, a essa pergunta temos, por um lado, os que dizem – escritores, intelectuais – que sempre leram, como se fosse um destino, invadidos pelo prazer de ler, como se estivesse  escrito no destino. E, também, a versão oposta, a leitura como uma conquista penosa, aqueles que dizem que não havia livros, que os pais não liam. Ambas são maneiras de se valorizar (risos). Valorizar como herdeiro inteligente, de uma tradição familiar, ou valorizar como conquistador de uma cultura proibida ou ausente. É difícil evitar – mesmo quando você quer responder de maneira sincera – uma formulação de um sentido ou outro. Estamos completamente definidos pelas narrativas prévias das respostas às perguntas pessoais.

Mais 60: Qual a sua versão?

RC: Eu não sei, não lembro se tinha um particular prazer de ler. Lia, certamente, porque devia ler na escola. Lia, porque havia livros para a infância e para adolescência, poucos é verdade, mas era uma maneira de ler mais ligado à escola do que ao prazer. Não sei se li alguns livros que não eram escolares. Infelizmente, eu poderia dizer que entre todas as narrativas, a importância da escola era absolutamente fundamental. Inclusive, na verdade, não se lia livros na escola. Na escola primária, lia-se trechos, fragmentos, eventualmente manuais. 

Mais 60: Seus pais tinham o hábito da leitura?

RC: Lembro que havia muitos poucos livros no apartamento de meus pais. Era uma situação normal, que correspondia ao nosso meio social. Meio em que havia, também, uma divisão entre homens e mulheres, muito forte. Acho que minha mãe nunca leu um livro na sua vida inteira, o que não significa que não lia. Lia revistas femininas. Lia fotonovelas e outras que tinham uma dimensão prática, para fazer bordados ou vestidos. Isso era representativo de todo um meio social.

Mais 60: Então, quando falamos do prazer da leitura?

RC: Na verdade, o prazer pela leitura, em si mesmo, é uma invenção das classes leitoras, que possuem essa tradição e que já teriam lido tudo que é útil para o sucesso escolar. Estou evitando os estereótipos. Há muitas leituras que não são prazerosas e que são feitas por outras razões, por utilidade, por exemplo. A aquisição do conhecimento pode ser particularmente penosa. Dessa maneira, a ideia de que ler é um prazer, me parece uma ideia perigosa, porque não corresponde à realidade de muitos leitores. Lendo um jornal, que é uma fonte de informação, temos uma possibilidade de reflexão, de saber algo sobre o mundo, no entanto, a categoria de prazer geralmente é diferente. Para mim, até agora, os livros que leio, as obras que estou lendo com prazer, não estão separadas de uma dimensão de trabalho e de estudo. Posso ter imenso prazer em ler uma obra de Shakespeare, esse prazer depende muito do meu conhecimento da escrita, dos códigos, inclusive. Por outro lado, quando está posto no palco, não é um curso sobre Shakespeare é uma invenção estética e aqui, sim, temos o prazer. Entendo que o prazer é maior se tenho o conhecimento e adquirir esse conhecimento em si mesmo, não é, necessariamente, prazeroso. Devemos estender o conceito de prazer. Conhecer pode ser um prazer, quando se associa à leitura, ao prazer de viajar na ficção, de encontrar a beleza, por exemplo, na poesia. O prazer é o resultado do trabalho, no sentido do deciframento, compreender como isso está construído, razão pela qual acredito na necessidade de transmitir ao leitor as condições para produzir o prazer, que não é uma coisa imediata. Se você escreve um poema, de forma poética, não necessariamente hermética, mas um poema que foi construído com certa técnica complexa, não estou certo se para um leitor não preparado haverá prazer, provavelmente deixará o livro. Na verdade, creio que se produz a condição de possibilidade do prazer. E, talvez, nossa tarefa seja facilitar a entrada em um mundo desconhecido por muitos, aqueles que não têm capital econômico, capital cultural para poder desfrutar desse prazer. É possível pensar de maneira diferente, mas não creio que haja imediatez no encontro com a beleza, sem uma preparação para saber o que é o belo. Essa é uma visão, talvez mais didática, não há uma evidência herdada das categorias estéticas, elas devem ser construídas e a construção, em si mesmo, é o trabalho e não o prazer. O prazer é o resultado desse trabalho. 

Mais 60: Voltando o foco para o tema de nossa revista, o envelhecimento. Existem especialistas que apontam para o ano 2050 como o momento que, no mundo, teremos mais velhos do que crianças. É lugar comum, sempre que falamos de educação, nos remetermos à educação do jovem e à educação da criança. Como vê essa ausência de discurso quando se trata da educação para velhos, uma vez que temos como objetivos da educação, a transformação, o conhecimento dos códigos que permitam vivenciar o prazer.
RC: Em primeiro lugar, suponho que seja objeto de discussão na revista a definição da categoria “velho”, porque a categoria que parece absolutamente estável é, na verdade, uma categoria particularmente móvel.  Não só porque com o aumento da esperança de vida a categoria “velho” pode se modificar. Por exemplo, no século XIV o indivíduo com 40 anos era considerado velho. Talvez, em 2050, até a pessoa de oitenta anos, seja relativamente jovem. Esta é uma primeira reflexão, importante, para sua pergunta. Em segundo lugar, quem decide quem é velho? Há uma multiplicidade de instâncias na sociedade, há limites subjetivos. Quando dizemos que a partir de certa idade você pode ter benefícios, por exemplo, não enfrentar fila para embarcar em voos, lugar reservado no transporte público etc. isso é um decreto. Na França não se pensa, como no Brasil, que para algumas prioridades sessenta anos é a idade do velho. Então, quem seria o velho? Veja, por exemplo, todos os debates em torno da idade de aposentadoria. A destruição na Europa da sociedade do bem-estar, do welfare State, está diretamente ligada a esse critério defendido, ou atacado, da idade de quem é considerado se não velho, suficientemente velho para que possa se aposentar. Veja bem, a discussão sobre a variação dessa idade não tem relação direta com o corpo dos velhos, interessa sim aos sindicatos e ao estado para decidirem que o limite deva ser sessenta e cinco, sessenta e oito ou setenta anos. Em sua pergunta o que existe é uma reflexão sobre a prática de uma educação contínua. A educação contínua não é separada da questão da fronteira entre “velho e não velho”, neste caso, a categoria de idade, que é móvel, deve ser objeto de discussão. Tal discussão pode estar no âmbito da medicina ou, como dissemos antes, ser uma discussão burocrática e administrativa, para decidir a fronteira para vários tipos de vantagens e privilégios ou, até mesmo, proibições! A discussão pode estar no âmbito psicológico.  Por exemplo, na França, havia a defesa da idade de sessenta anos como momento de aposentadoria, para se viver a aposentaria como um momento de libertação, de fazer coisas que eram impossíveis antes como viajar, descansar. Mas em outros ofícios, como o meu, por exemplo, parece que o limite da idade para aposentaria pode ser frustrante.

Mais 60: No Sesc há um programa voltado à pessoa idosa, que completou 50 anos. Quando teve início na década de sessenta, a atuação era junto a aposentados.  A intenção do Sesc, em um primeiro momento, era proporcionar-lhes um espaço de sociabilização, e para participarem de atividades recreativas, fazer amigos.  Em um segundo momento, o programa atualizou-se com a proposta de ampliar as ações voltadas a esses grupos. Além da recreação, bailes, encontros, e também o aprendizado. Dessa forma, o Sesc abriu espaço para uma educação permanente. O programa foi replicado em instituições por todo o Brasil. Na década de setenta, outra atualização, na área das práticas corporais, uma vez que, ainda, considerava-se que após determinada idade não era adequado a prática de atividade física. O Sesc trouxe essa oportunidade para o cidadão.  Na década de noventa esses cidadãos foram convidados a juntar-se a outros públicos, nas Unidades.

RC: São duas coisas diferentes, aposentar-se pelas leis do trabalho de mercado, de acordo com cada tipo de trabalho e todo sistema de privilégios de categorização. Fui surpreendido, no Brasil, ao saber da prioridade, para quem tem mais de sessenta anos, para embarcar em voos. É decisão de uma autoridade  a definição para limitar a idade e a categoria velho. É uma questão difícil, ao aplicar o limite dos sessenta anos, para definir esse público a quem se dirigiria de forma particular de transmissão cultural.

Mais 60: A sociabilidade possível nas atividades, também, é algo muito importante.

RC: Sim, uma atividade de teatro, por exemplo, pode tirar a pessoa da solidão. Na sociedade contemporânea, principalmente, isso é muito importante. Há cerca de cinco anos, tivemos um verão na França, quando muitas pessoas morreram. Não por causa do calor, mas porque estavam sozinhos, não havia ninguém que se preocupasse com eles. Na Espanha também faz calor, mas as redes de sociabilidade e familiar oferecem proteção. Claro, há alguém para preocupar-se, para cuidar. Por isso, creio que o tema da solidão é fundamental. Outro tema é da segregação. A mistura dos públicos parece-me uma forma importante de conscientizar os mais jovens na atenção aos idosos, de conscientizar para esse momento da vida, por exemplo, ensinar a manter relações de sociabilidade. Lutar contra a ideia de segregação pode ser uma maneira de minimizar a solidão. Talvez os leitores não gostem muito dessa discussão na sua revista.

Mais 60: Hoje percebemos, particularmente no Brasil, preconceitos e estereótipos em relação aos velhos. Uma visão de que não teriam mais nada para aprender, ou que não teriam interesse em aprender. Um estereótipo, em particular, diz respeito à tecnologia e gostaríamos de seu olhar sobre a questão. Sabemos que há especialistas contra e outros a favor, por exemplo, dos jogos eletrônicos para os jovens, que poderiam tanto servir para novos aprendizados, como para novas conexões. A mesma questão, quando tratamos dos velhos, refere-se, normalmente, à reabilitação. Sabemos que no Brasil jogos eletrônicos virtuais são usados para reabilitação, porém, há velhos que querem aprender a jogar por prazer, pela possibilidade de fazer parte desse mundo tão diferente. O que pode dizer sobre isso?

RC: A diferença de geração, evidentemente, desempenha um papel nessa revolução tecnológica. Alguns idosos sabem operar um computador, porque seu meio social propiciou, mas para os que não sabem, seria uma oferta muito interessante. No entanto, não começaria pelo jogo. Sugeriria a possibilidade da comunicação, escrever e-mail, para contatos, que é uma forma de substituir a solidão. Bem, para mim é, também, uma forma de solidão, mas não a solidão absoluta. Porque é possível enviar mensagens, estabelecer conexões. Veja, não está distante de nossa primeira discussão. Talvez, nesse caso, a didática tivesse que ser diferente, poderia ser definido por idade, mas definido pela sua exterioridade absoluta no mundo das máquinas. Por exemplo, no Colégio de France há colegas que nunca utilizaram em sua vida um computador. Aqui há uma fronteira, que é da idade, mas é, também, social. Nesse caso, seria interessante desenvolver uma pedagogia específica para permitir a entrada nesse mundo mágico, fundamentais para as relações e que o cidadão sobreviva no mundo de hoje.  Alguns querem uma diversão com os jogos eletrônicos. 

Mais 60: No Brasil, aqui em São Paulo, existem bancos de cor diferente específicos para idosos, gestantes, deficientes. Você não acha que há um equívoco? Como se todos idosos fossem frágeis.

RC: No Brasil, quando um jovem se levanta para me deixar sentar, isso me deixa furioso (risos). Bem, em primeiro lugar, devo aprovar a urbanidade do jovem brasileiro. Mais isso nunca aconteceu no metrô de Paris. Por que estou mais cansado? É uma situação muito difícil, não quero ofender...  Outro caso de segregação são os carros exclusivamente para mulheres. Existe em São Paulo e no Rio, mas não existe na França, por exemplo. Há mulheres que discordam e não querem utilizar esses  carros, no Rio de Janeiro. 

Mais 60: A estratificação por idade é uma temporalidade estabelecida. Os anos, as horas são medidas. Como potencializar essa capacidade de romper com isso? A  ruptura por libertação.

RC: O que falta, evidentemente, depois dessa discussão em relação à idade é a gestão do tempo. Por exemplo, na aposentadoria o tempo pode ser devastador, tempo vazio, tempo de solidão, tempo de só passar a hora para outra ou, por outro lado, o tempo pode ser utilizado, tempo para fazer algo, que não é um tempo de pura contemplação.