Sesc SP

postado em 07/10/2013

Resenha: CDs Poesia é Risco e Crianças Crionças

Cid Campos capas-1

O professor e performer Lúcio Agra faz uma resenha sobre os CDs Poesia é Risco e Crianças Crionças, de Augusto de Campos e Cid Campos. O texto abaixo conta um breve histórico dos projetos e dos envolvidos, destacando a importância destas obras entre tantas outras.

Em 1995 chegava às prateleiras das lojas, ainda então lotadas de uma nova mídia - o CD - um disco inteiramente estranho. Saindo pela gravadora Polygram, poderia evocar outros singulares lançamentos de décadas anteriores como Araçá Azul, de Caetano Veloso (1972) ou Smetak, (1974), com capa de Rogério Duarte. Dessa vez, ilustrado com uma foto de Ivan Cardoso retratando o compositor – e na contracapa o outro compositor –, pai e filho, Augusto de Campos e Cid Campos, novamente estranhas sonoridades combinadas à poesia. Mas era mais, porque eram também poemas. Poemas-músicas ou poemúsicas, 30 faixas, número que surpreende mas que, na nova mídia, se tornava possível. Eram faixas bem curtas, uma espécie de antologia. Era uma coletânea de um poeta com décadas de produção, uma compilação que ao mesmo tempo se apresentava verbi-voco (sonora-musical e vocal) e, logo em seguida, visual através do encarte-livro e da performance que teria o mesmo nome do disco: “poesia é risco”. E este título, por sua vez, também um poema.

A luta começara anos antes. Cheguei a ver, na casa de Augusto, o modelo pronto, leiautado pelo próprio autor, também produtor das versões digitais de seus poemas desde que comprou seu primeiro Mac. Estava tudo pronto, da capa ao CD, até que a Polygram topou a parada. Uma tiragem pequena garantiu, no decorrer dos anos, o status de raridade àquele CD. Teria que ter sido mais. Graças ao SESC, acrescido de várias faixas novas, a obra passa a expandir-se e ganhar o desenho merecido.

Há um outro sentido de justiça a ser praticado com esse disco: a disseminação entre o público jovem que já acontecera a partir da versão anterior. Augusto atinge em cheio essa audiência. Como disse em outro texto, faz algum tempo, eu conheço jovens bem jovens que vibram com Lou Reed, com Nirvana, Smashing Pumpkins, Franz Ferdinand e Augusto de Campos.

Seria preciso falar desse Augusto, cuja mais perfeita tradução é a versão do “grasshoper” de cummings com “g-a-f-a-n-h-o-t-o”, composta por Cid Campos e com ele gravada no poesia é risco. Eu desconheço quem tenha conseguido funkear cummings e Augusto e Cid conseguiram. Como se fosse uma reversão da arqueológica manchete de O cruzeiro, anos 50, que anunciava o concretismo como “o rock’n’roll da poesia”, o CD é um experimento pop no melhor sentido dessa forma. Desse geodo saíram alguns cristais como “O verme e a estrela” que se espalhou na voz de Adriana Calcanhoto. O poema de cummings poderia, tranquilamente, estar na grade da MTV, num clip de Walter Silveira. 

O tratamento sonoro de Manny Monteiro dá um sentido de força, peso e atualidade que impressiona um ouvinte contemporâneo. 

Na nova edição, surpreende-se ainda acréscimos de Rimbaud (“a estrela chorou rosa...”, “canção da mais alta torre”), insistência de Augusto nas traduções do poeta francês que é a chave do entendimento de outros, de Jim Morrison a Kurt Cobain, talvez de Janis Joplin a Amy Winehouse. Surpreendente? Nem tanto. Foi o próprio Augusto que, tendo defendido, na mídia, os Tropicalistas, na Internet escreveu sobre as novas cantoras do século 21.

Passam-se os anos e o “olor de noigandres”, o perfume anti-tédio prossegue nas gerações que se sucedem na própria família Campos. O filho de Augusto também tem filhos e estes viraram motivações para ele e para o avô. Canções para as “Crianças-Crionças” trazendo novas traduções de Augusto de Campos para antigas e renovadas preferências: Lewis Carroll e o humorista “non-sense” Edward Lear. 

O cerrado estilo de “Poesia é Risco” totalmente experimental, com amplo uso de recursos vindos da música moderna de concerto, escalas dodecafônicas, e sonoridades sintetizadas agora reaparecem no filtro do extraordinário compositor – hit maker – que é Cid Campos. A “Canção da Falsa Tartaruga”, “O mocho e a gatinha” reeditam aquele tom que já se avizinhava no outro CD, aprofundando um bom gosto de construção que dialoga, tranquilo, suave, com a paisagem musical à volta. 

Um dos mais notáveis feitos desse trabalho é que jamais soa somente dentro do que seria sua encomenda: não é só um disco para crianças (embora isso, em si, já seja uma tarefa bem difícil). Pode ser ouvido por adultos com prazer e sem que se sinta um mal-estar por eventuais reducionismos infantilizados. São canções que sustentam o entoar, a execução, enquanto se cresce também. Talvez, em futuro próximo, isso apareça com mais evidência.  Como nos surge hoje o belo e conciso “3 de maio” de Oswald de Andrade:” Aprendi com meu filho de dez anos/Que a poesia é a descoberta/Das coisas que eu nunca vi” . Esse é um “álbum conceitual” – como se costumava dizer nos anos 70 – dessa premissa da descoberta a partir do olhar da criança.

Em “Recado aos Peixes” e o famosíssimo “poema-cauda” está o texto daquele que talvez seja o mais importante escritor a dialogar com o universo infantil: Lewis Carroll. Contamos com boas edições de suas Alices, agora contamos também com a sua dicção traduzida musicalmente em um idioma sonoro claramente brasileiro. Se a poesia é o estabelecimento da perfeita relação entre som e sentido, como queria Jakobson, então de Augusto a Cid, dos anos 90 aos dias de hoje, uma trilha de tradução como criação (como queria Ezra Pound), tradução verbal e musical, a linhagem que, além dos autores citados, reúne ainda Walter Silveira, Haroldo de Campos, Paulo Leminski (ele, sempre ele, pioneiro no ramo dos poemas para as crianças) e Luís Turiba.  A linha da invenção.

Lucio Agra (Recife, PE, 1960) vive e trabalha em SP. Performer, poeta, professor. Atua artisticamente no Brasil e no exterior. Recentemente publicou Monstrutivismo - reta e curva das vanguardas (Ed. Perspectiva, 2010). Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo. (http://contemporaryperformance.org/profile/LucioAgra)

 

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