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Laura de Mello e Souza

Laura de Mello e Souza
A historiadora fala sobre os desafios da pesquisa, a popularização no Brasil dos livros que descortinam fatos e eventos históricos e os bastidores da escrita de seu último trabalho


Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Laura de Mello e Souza é autora de Cláudio Manuel da Costa (Companhia das Letras), entre outras publicações. Escrito para a série Perfis Brasileiros, o livro revisita as Minas Gerais do século 18 e lança uma nova perspectiva sobre a vida, a obra e o destino do poeta brasileiro que integrou a Inconfidência Mineira, movimento ocorrido em 1789 contra o domínio português. Em entrevista para a Revista E, Laura fala sobre as ambiguidades do personagem, os desafios do trabalho de um historiador e a popularização dos livros de história no Brasil. A seguir, trechos.

No seu livro sobre Cláudio Manuel da Costa você precisou lidar com uma documentação muito pequena sobre o personagem. De que forma se constrói uma obra como essa?
O historiador trabalha com documentos, mas, sobretudo, com o conhecimento do contexto e a imaginação histórica. A grande diferença entre os livros produzidos por jornalistas e por historiadores está na imaginação e na capacidade de refletir historicamente. Acho que a documentação era pouca, mas ao mesmo tempo existe uma mistificação do excesso de documentação. No momento tenho uma pesquisa que é a mais sofisticada que já fiz, a mais difícil, a que tenho maior quantidade de documentos, mas não consigo sentar para escrever. São tantas evidências que você fica paralisado. O historiador não é um jornalista. O jornalista precisa de uma quantidade de evidências e informações para fazer uma reportagem. O historiador nem sempre, porque ele é também um pensador, um intelectual no sentido mais clássico. Ele lida um pouco com a filosofia, a literatura e é multifacetado. Mas ele não pode evidentemente falsear. Tanto que, no livro, eu deixo explícito tudo o que é conjetura.
Isso é uma ousadia no trabalho de um historiador?
Sim, o Cláudio foi uma ousadia que deu certo. Não tem nada inventado ali. Existe um capítulo inventado, em que eu imagino o drama do Cláudio às vésperas de ter entregado os amigos, mas é claro que isso exige um aprofundamento do contexto histórico. Eu só poderia ter escrito esse livro a essa altura da minha vida, com os 40 anos de pesquisa e 32 anos de docência que eu tinha na época. Sou uma historiadora que muda de assunto, não sou especialista em assunto nenhum, mas se existe um assunto permanente na minha trajetória é Minas Gerais no século 18. Desde 1982 eu me detenho nessas questões, e desde 1989 eu me interesso pelo Cláudio.

Em determinado momento do livro você diz acreditar que ele se suicidou. Por quê?
Há muitas evidências que indicam o assassinato, mas elas ganharam impacto durante a ditadura militar, influenciadas pelo que estava acontecendo no Brasil na época. Eu tenho praticamente certeza de que ele se suicidou. Várias pessoas que acreditavam no assassinato hoje me dizem que foram convencidas do suicídio. Todo o drama pessoal dele me leva a ter convicção de que ele não aguentou o impasse no qual estava. Existe uma frase da confissão dele que diz: “Eu estou falando tudo isso, mas eu não acredito que pelo fato de eu estar delatando eu seja melhor do que aqueles que cometeram o crime”. Está confessado ali que ele se considerava um homem fraco. Para a minha imaginação histórica, é mais do que plausível que ele tenha saído dali e se enforcado.

Então o historiador trabalha com aproximações?
O historiador não tem certezas. Nenhum historiador que se preze acha que está recompondo as coisas tais como elas se passaram. Aquilo que oferecemos ao público é o melhor que podemos oferecer a partir de uma reflexão em cima de uma série de evidências. Existe uma obrigação de chegar o mais próximo possível de algo que se passou, mas aquilo que se passou de fato nós não saberemos jamais. A reportagem tem um pouco a ficção de que está oferecendo a verdade, enquanto o historiador está sempre perplexo diante do seu objeto. E o Cláudio é um tema que coloca você na perplexidade.

O livro mostra que você tem admiração pela poesia dele e uma compreensão das fraquezas. Como foi lidar com um personagem tão ambíguo?
Não existe ninguém que seja santo. As personalidades absolutamente perfeitas são inquietantes. Eu prefiro os homens como o Cláudio, que têm defeitos e são cheios de dúvidas. Na história não existem certezas, é sempre perplexidade. Não existe preto no branco, é sempre ambiguidade. É claro que virão estudos sobre o Cláudio que irão muito além do meu, e talvez invalidem tudo o que eu escrevi. Não tenho a menor ilusão de que as coisas que escrevi sejam definitivas. Pelo contrário, é bom que não sejam, porque isso significa que há uma dinâmica cultural no país.

Existe certa poesia na construção do personagem, dos sentimentos e situações. No que este livro é diferente dos outros que você escreveu?
É o único livro que fiz sem nenhuma preocupação acadêmica. Além disso, ele foi uma encomenda e relutei um pouco em aceitar, mas no fim pude ter uma liberdade que nunca tive dentro da academia. A questão das notas prende muito o historiador. Eu acho que a nota é uma camisa de força terrível, mas é algo importantíssimo, claro.

Como você planeja uma obra, antes de começar a escrita?
Varia muito, mas no geral preciso de uma quantidade muito grande de informação para poder começar. Depois faço esquemas que vou colando no meu escritório, para saber o que vai ser tratado dentro de cada capítulo. Além disso, trabalho com tábuas cronológicas rigorosíssimas. A cronologia é algo muito difícil, já que onde mais se erra é nas datas e nos nomes. No caso do Cláudio o processo foi muito diferente. Cheguei a escrever dois ou três capítulos ao mesmo tempo.

Ainda sobre o Cláudio, quem eram aqueles homens contemporâneos a ele? Eram frutos de Coimbra, onde boa parte da elite ia estudar?
Depende. Havia desde homens muito rudes, como Inácio Correia Pamplona, um dos delatores da Inconfidência, até homens da maior sofisticação, como era o caso do [poeta Tomás Antônio] Gonzaga e do Cláudio, que passaram por Coimbra, ou do Cônego Luis Vieira da Silva, que nunca passou por lá. Havia militares, como o Tiradentes, e fazendeiros. Havia uma composição curiosa de pessoas de procedências variadas.

E quais eram as reais motivações deles?
Esses homens tinham interesses enraizados no poder. Houve um momento na dominação colonial em que as elites coloniais atuaram junto dos governadores e adquiriram uma série de benefícios, como cargos. Do ponto de vista da época, isso não era corrupção. Ao mesmo tempo, eles tinham ideias comuns, como civilizar os povos, reformar o governo, melhorar a agricultura, além de adotar uma série de procedimentos próprios do reformismo ilustrado. O ideal de liberdade era algo muito pontual, mas a concepção de liberdade era diferente daquela que surgiu depois, com a Revolução Francesa [em 1789]. Outro objetivo importante era tentar participar mais da administração colonial e da administração do império. Diferentemente da América espanhola, no Brasil não existiam governantes brasileiros, salvo um ou outro caso, então eles queriam participar mais do governo e ter representação colonial junto aos conselhos do reino. Acredito que a principal motivação era essa, de poder implementar ideias e ter benefícios. No antigo regime, as pessoas governavam porque tinham benefícios, e naquela época isso não era corrupção.

Esses governadores da época da Colônia tinham alguma autonomia, um veio modernizador, ou eram simplesmente fiscais do rei para levar ouro?
Era como hoje: tinha governador bom e ruim. O Gomes Freire, por exemplo, era um homem extraordinário. Outro exemplo era Dom Antônio de Noronha, que separava muito o público do privado. Ao mesmo tempo em que ele escrevia cartas pessoais ao [marquês de] Lavradio, era quase desaforado em pontos em que ele não concordava, como no caso da proibição dos teares em Minas Gerais. Então existia, sim, alguma autonomia, mas isso dependia do governador, do momento e da região.

Alguns desses governadores chegam a desenvolver uma espécie de amor pelo Brasil, no sentido de trazer uma melhoria para a região, e não apenas ser um agente da corte para extrair as riquezas?
É quase impossível saber, mas eu acredito que sim, que alguns ficaram profundamente ligados ao Brasil. Se a gente for ler as cartas, todos diziam que detestavam o Brasil e queriam logo ir embora, mas eles faziam isso para que quando voltassem a Portugal recebessem maior remuneração. A queixa era uma moeda valiosíssima para a remuneração. Então é difícil saber, porque todos eles se queixavam. Dom Rodrigo José de Meneses foi o primeiro governador das Minas que trouxe a mulher e os filhos, então ele deve ter estabelecido laços com a região. Isso, inclusive, criou um ambiente quase que de pequena corte, que catapultou uma produção interessantíssima. Alvarenga [Inácio José de Alvarenga Peixoto], Gonzaga, Cláudio, dedicaram poemas à esposa dele, por exemplo.
Você estuda a questão da feitiçaria e religiosidade. Essa questão era forte na época?
Esse é um dos traços distintivos da cultura brasileira. A nossa maneira de lidar com aquilo que não conhecemos sempre foi extremamente variada. Quantas pessoas você conhece hoje que vão tomar passe, que vão a centro espírita e ao terreiro de candomblé? As tradições europeias mágico-religiosas eram fortíssimas, então a gente não pode creditar isso exclusivamente a uma herança africana. Os europeus faziam tanta simpatia e acreditavam em tantas entidades sobrenaturais quanto os africanos e os indígenas.

Essa multirreligiosidade prosperou no Brasil por ser uma terra distante e selvagem, onde o medo era constante?
Sim, as distâncias têm um papel incrível, mas acho que também tem a ver com todo o processo de colonização. A América portuguesa é uma região que surge sob o signo da colonização e da exploração e tem escravos, negros, índios e europeus de várias procedências. É uma situação de complexidade cultural muito grande, e a gente não pode esquecer que a colonização tem duas mãos. O colonizador também é colonizado. Na América ibérica as situações de multiculturalidade são muito frequentes, e isso implica não apenas a adoção de práticas concretas, mas também de um imaginário que é colonizado, no sentido de ser absolutamente multifacetado.

Nesse período, vemos o europeu como colonizador, o negro como escravo e o índio tangenciando todo esse universo, sendo que ele também era um personagem próximo. Como isso se explica?
Se existe uma tarefa para a historiografia brasileira, é estudar melhor os indígenas. O fato de os escravos negros virem de longe, serem castigados fisicamente e terem tido grandes pensadores, como Joaquim Nabuco, falando do abolicionismo, tornou os brasileiros mais conscientes do drama da escravidão. Bem mais conscientes que do drama da população indígena. Mas tudo isso se aplica ao Sul e Sudeste, e não à região Norte e Centro-Oeste. Lá a consciência é diferente.

E sobre o papel da Igreja na escravidão de ambos? Os jesuítas ficavam horrorizados com a escravidão indígena, por outro lado conviviam com a escravidão negra. Qual o motivo?
Há livros importantes sobre isso, como A Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi, que é uma obra bastante explicativa do fato de a Igreja ter defendido a escravidão negra. A questão é extremamente ambígua, mas não é irracional. Os índios são gentios, eles nunca tiveram a possibilidade de conhecer a palavra de Deus, enquanto que com os negros isso se coloca de uma maneira diferente, há regiões da África que são cristãs, e uma forma de redenção seria a escravidão. Mas é uma coisa muito complexa. É uma das ambiguidades e contradições mais presentes nesse passado.

Neste momento em que há historiadores escrevendo livros best-sellers, existe maior curiosidade pela história. O que isso significa para você? É um modismo?
No mundo inteiro os livros de divulgação de história têm muita saída. Isso é muito bom, por um lado, porque populariza o conhecimento do passado, mas ao mesmo tempo existem vários riscos. Você só traz alguma contribuição original se conhecer muito bem o que está fazendo. O que às vezes eu vejo são livros que vendem a ideia de que estão trazendo uma novidade, quando na verdade estão perpetuando lugares-comuns. Acho que existe um descompasso entre a pesquisa de inovação e a de divulgação. O ideal seria inovar e divulgar rapidamente numa linguagem acessível. Eu não sei fazer isso porque sou vagarosa. Para mim, pensar e escrever são atividades lentas.

As pessoas têm migrado da ficção para os livros de história?
Como o romance hoje em dia é muito difícil de ler, a história ganha público por contar histórias de fato. As pessoas querem ler histórias com começo, meio e fim. A ficção contemporânea frequentemente é insuportável. É insuportável porque a realidade é insuportável. A literatura não tem compromisso com contar história, ela tem que perturbar, colocar o dedo na ferida, mas não necessariamente contar história. Mas tem gente que quer ouvir uma história, e isso é bom e ruim, porque do ponto de vista acadêmico temos o compromisso de alertar o leitor de que a gente nunca vai saber como as coisas se passaram. O leitor medianamente culto sabe que aquilo é uma possibilidade e há outras, e por isso a história é reescrita. 
“As personalidades absolutamente perfeitas são inquietantes. ¿Eu prefiro os homens como o Cláudio [Manuel da Costa], ¿que têm defeitos e são cheios de dúvidas”


“Se existe uma tarefa para a historiografia brasileira, ¿é estudar melhor os indígenas. (...) Os brasileiros são mais conscientes ¿do drama da escravidão que do drama da população indígena”

“Existe um descompasso entre a pesquisa de inovação e a de divulgação. O ideal seria inovar e divulgar rapidamente numa linguagem acessível”

“Na história não existem certezas, ¿é sempre perplexidade. Não existe preto ¿no branco, é sempre ambiguidade”