Sesc SP

postado em 25/05/2015

Identidade resgatada

Foto: Pisco Del Gaiso
Foto: Pisco Del Gaiso

      


Para ler e assistir: textos produzidos por lideranças indígenas e pesquisadores, além de um documentário, propiciam um diversificado painel de informações sobre o povo Baré

Por Maurício Fonseca*

 

No período de 13 a 16 de abril de 2015, aproximadamente mil lideranças indígenas de todas as regiões brasileiras ocuparam Brasília, numa das mais significativas manifestações do movimento indígena ocorrida nos últimos anos. Sentindo-se ameaçados pela ofensiva conservadora que ocorre em todas as instâncias da vida nacional, lutam para garantir os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, pré-requisito fundamental para manter sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. No ponto de vista indígena,  o processo de  etnocídio, iniciado há 515 anos, ainda está em curso. Recusam o papel subalterno imposto a eles pelo Estado brasileiro e lutam para reafirmar e revitalizar suas identidades culturais.

O livro Baré: povo do rio (Edições Sesc São Paulo, 2015, 340 páginas) dialoga  de perto com esta realidade.  O livro é uma iniciativa do Sesc São Paulo, inscrita no âmbito do Programa Diversidade Cultural, que, segundo o seu diretor regional, Danilo Santos de Miranda, “desenvolve ações com vista ao reconhecimento, ao respeito, e à preservação das identidades, bem como do patrimônio material e imaterial de distintos grupos étnicos e sociais em nosso país”.

Organizado por Marina Herrero e Ulysses Fernandes, o livro contém depoimentos, artigos e crônicas produzidas por lideranças indígenas, pesquisadores, arqueólogos e etnólogos que propiciam ao leitor um amplo, rico e diversificado painel de informações e análises sobre a história, as memórias, os costumes e lutas do povo baré, habitantes ancestrais do médio e alto rio Negro.

No prefácio intitulado “O índio em devir”,  o etnólogo e americanista Eduardo Viveiros de Castro afirma que o processo de etnocídio impetrado contra os povos indígenas  ocorreu através da “ocupação militar, a expropriação territorial, a dizimação demográfica provocada por doenças  físicas e metafisicas disseminadas pelos invasores, a escravização econômica, a repressão política, a interdição linguística, a brutalização das crianças nos internatos missionários, a violação ideológica através da destruição dos sacra indígenas e a imposição truculenta de uma religião alienígena”.

Esse contexto histórico nos propõe perguntas cruciais: “Como sobreviver ao etnocídio? Como refazer um povo? Como recuperar a memória e reinventar um lugar no interior do estranho, do estreito e instável intervalo entre ‘índios’ e ‘não índios’ que ora se abre, ora se fecha para os povos nativos do continente?”. Para Viveiros de Castro, os baré são uma “resposta em ato” a estas indagações.

Na introdução dessa obra, Marina Herrero e Ulysses Fernandes contextualizam o processo de produção do livro e do documentário homônimo, dirigido por Tatiana Toffoli, que pode ser assistido no site do Sesc TV. A opção de realizar este projeto com o povo baré relaciona-se à sua condição de vulnerabilidade étnica e social. Para os organizadores, o projeto se propõe a “documentar e divulgar a vida atual dos baré, um pouco da sua história e seus rituais – alguns mantidos em segredo devido à constante perseguição das igrejas (...) – além de lutas e conquistas desse povo bravo e corajoso”.

O depoimento de Marivelton Barroso Baré, jovem liderança indígena baré, retrata a  sua trajetória  e os conflitos que viveu relativos à definição de sua identidade indígena. O amadurecimento de sua consciência étnica, num contexto adverso, e a experiência política em associações indígenas culminaram em sua eleição como diretor da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Marivelton nos relata, também, algumas histórias tradicionais baré que são transmitidas, de geração a geração, através da oralidade.

Destacamos o texto de Bráz França Baré, denominado “Baré-Mira Iupirungá - Origem do povo baré” por representar o principal momento do protagonismo indígena na produção deste livro, ao propor a versão indígena da história deste povo. Em uma linguagem envolvente, este importante líder indígena do alto rio Negro nos relata a saga de seu povo desde a origem, as peripécias do herói Mira-boia e de sua companheira Tipa, o aprendizado da cultura através dos ensinamentos de Poronominaré, mensageiro do deus Tupana, a expansão do povo baré e a ocupação do território ao longo do rio Negro. Relata, também, o processo de invasão dos brancos europeus e o etnocídio sofrido pelas populações indígenas dessa região. Conclui descrevendo o processo de retomada da identidade baré nas últimas duas décadas, fortalecida pela demarcação de seu território e pela revitalização de suas expressões culturais.

No artigo “Uma rede de fios milenares”,  o arqueólogo Eduardo Góes Neves informa que as pesquisas arqueológicas indicam que a bacia do rio Negro era habitada pelos ancestrais dos povos indígenas da região há pelo menos 6.500 anos. Ressalta a importância da arqueologia para conhecermos a história dos povos indígenas que habitavam o território brasileiro antes da invasão portuguesa.

Em “Os baré do alto rio Negro: um breviário histórico” o antropólogo Paulo Maia Figueiredo descreve as etapas do processo de colonização portuguesa do rio Negro, ocorrida a partir do século XVII,  e os impactos sobre a população indígena. Aponta que o fato dos baré ocuparem a calha do rio Negro e terem estado no meio do caminho entre os índios e os colonizadores contribuiu para a perda da língua e o abandono de tradições indígenas, o que acabou por torná-los um “povo invisível”, “quase brancos”.

No artigo “Yasú Yafumái Yanerimbaitá - Vamos fumar nossos xerimbabos!”, Paulo Maia Figueiredo faz um relato emocionante do kariamã, ritual de iniciação praticado pelos baré, onde os jovens são iniciados nos segredos de Jurupari, divindade que se manifesta através dos xerimbabos (flautas sagradas).

O escritor e tradutor  argentino Guillermo David, a partir de um olhar arguto e sensível, apresenta o texto “Puranga: a indianidade sitiada” que mescla observações sobre diversos aspectos do modo de vida das comunidades baré que ele visitou, com reflexões sobre os desafios atuais da indianidade. Não oculta sua condição de observador não indígena e os desafios que esta condição impõe a quem pretende refletir, sem preconceitos, sobre a “singularidade do outro”.

No posfácio intitulado “Baré em pauta”, o antropólogo Beto Ricardo relata o processo de organização recente do movimento indígena na região do alto e médio rio Negro e a participação das lideranças baré.

Baré: povo do rio conta ainda com as excelentes fotografias de Pisco del Gaiso, fotógrafo renomado, que retratam o ambiente vivido pelos baré, cenas do cotidiano nas comunidades, o plantio e preparo de alimentos, as festas e rituais.  

 


* Maurício Fonseca é historiador, membro do Colegiado Setorial de Cultura dos Povos Indígenas/MinC (2010 a 2015) e autor de Povos indígenas no estado de São Paulo (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 2008)

 

Veja também:

:: Vídeo | "Estes somos nós" - organizadores do livro falam do protagonismo dos índios no projeto. 

 

:: Trechos do livro | Clique na imagem para ampliá-la. Após a leitura, pressione a tecla ESC para retornar ao site.

 

 

 

:: Documentário Baré: povo do rio

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