Sesc SP

postado em 12/08/2015

Onde nasce a violência?

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Novo livro da série Mutações, Fontes passionais da violência aprofunda o conhecimento sobre as ideologias, as crenças e os propósitos capazes de arregimentar legiões para o conflito

 

Por Welington Andrade *

Se a técnica acena ao homem diariamente com toda sorte de facilidades que lhe garantem uma vida cotidiana mais amena e confortável, não é menos incontestável a ideia de que, no plano da aventura do espírito, ela lhe oferece também mais força e potência cujo efeito quase instantâneo é a irrupção da violência. Os novos meios de comunicação – exemplos recentes não faltam em abundância – têm sido alimentados por insaciáveis impulsos violentos, ao mesmo tempo em que os alimentam também. O cinema, a televisão, a imprensa escrita, as mídias sociais... oferecem uma quantidade vertiginosa de imagens cruéis e nauseantes, consumidas pela avidez dos olhos e pela desidratação das emoções. Trata-se de uma condição paradoxal: o homem civilizado dos dias que correm vem sendo regularmente nutrido pelo consumo automático de violência exterior que se transforma com muita celeridade em vivência interior.

Mais do que lamentar tal conjuntura e reagir a ela com estática indignação, a proposta do livro Mutações: fontes passionais da violência, o mais novo título da bem-sucedida série organizada por Adauto Novaes e publicada pelas Edições Sesc São Paulo, consiste em pensar o homem e suas paixões diante desses novos tempos que nos fascinam e assombram. As dificuldades da empreitada, naturalmente, são evidentes, mas elas implicam o cuidadoso exame de questões bastante propositivas ao leitor. Primeiramente, o que se entende por civilização técnica? Depois, o que é feito do homem diante da revolução tecnocientífica, biotecnológica e digital? Por fim, que papel tem hoje o espírito, entendido como inteligência ou potência de transformação criadora?

Como é praxe na coleção, os autores convidados dedicaram-se a temas bastante diversos entre si, dando conta de um arco temporal que tem início com as primeiras indagações propostas pela cultura grega antiga e chega aos principais embates vividos por nós na contemporaneidade. Os vinte e dois textos reunidos pretendem tratar das violências passionais nos destinos da humanidade. De modo geral, tende-se a pensar a violência somente como o efeito de causas objetivas, atribuídas quase sempre a razões econômicas e sociais. Tal visão redutora nos impede de refletir com mais autonomia. Sabe-se que a violência é parte do humano, constituindo um fenômeno que alguns teóricos chamam de dialética da criação e da destruição, presentes virtualmente, por exemplo, nas convenções sociais e na política – o que nos desafiaria a inquirir: seria a violência, então, uma forma inequívoca das relações humanas?

Em “A guerra de Troia não acontecerá: pathos antigo e tecnologia moderna”, Olgária Matos, professora titular do departamento de filosofia da USP e da Unifesp, analisa a violência sob a ótica da guerra, detendo-se, à luz do pensamento de Walter Benjamin, sobre as transformações que o espírito bélico vem sofrendo no Ocidente desde a Ilíada, de Homero: “Na guerra antiga, o herói expiava sua hybris, a violência praticada, diante dos deuses. (...) Já a guerra moderna é a forma em que ‘a humanidade se transforma em espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem’. Se a destruição de Troia foi determinada pela hybris guerreira e pelo temor da vingança futura de algum sobrevivente, os heróis gregos eram punidos pelos deuses por seus excessos. Os crimes de guerra contemporâneos são os da hybris, mas uma hybris menos os deuses, pois são crimes sem culpa e sem temor da punição”.

Já o crítico de arte e arquitetura Guilherme Wisnik, em “Mundo, obsolescência programada”, trata do crescimento desordenado das grandes metrópoles ao redor do mundo globalizado como um sintoma da violência praticada institucionalmente pelo sistema capitalista: “Não é possível supor, portanto, que a violência tenha deixado de desempenhar um papel central em nossa sociedade em tempos recentes”, afirma ele, observando que a diferença é que agora ela não parece mais investida de um poder catártico, tal como na primeira metade do século XX, tampouco de uma força construtiva regeneradora, tal como na destruição criativa da segunda metade do século XIX. “Naturalizada e infiltrada em todas as esferas da vida social de uma maneira muito mais banal e capilar, a violência, entre nós, se tornou desapaixonada. É a destruição lenta do consumo a que se refere Argan. E o predomínio do consumo enquanto valor social hegemônico, tal como percebeu Hannah Arendt já no final dos anos 1950, significa a erosão da durabilidade das coisas, da durabilidade do mundo”.

Em “Do desejo à violência e reciprocidade”, Jean-Pierre Dupuy, professor na Escola Politécnica de Paris e na Universidade de Stanford, discute a relação entre violência e desejo. Partindo da premissa que orientou a obra antropológica do filósofo franco-americano René Girard, para quem “a origem do sagrado está na violência e a origem da violência está no desejo”, Dupuy afirma: “O homem não é violento por natureza (como Konrad Lorentz pensava); ele não é violento porque deve lutar para ter acesso a recursos escassos (como Thomas Hobbes acreditava). Ele é violento porque é um ser de desejo”.

Ao final da leitura, acompanhado pelo rigor e pelo apuro conceitual que está na base dos ensaios e artigos aqui reunidos, o leitor certamente sentir-se-á mais preparado para transitar pelas esferas do pensamento crítico, por meio do qual o mundo parece um lugar menos ameaçador. Mutações: fontes passionais da violência constata que o homem contemporâneo não está sabendo criar uma política, uma moral, um conjunto de ideais que estejam em harmonia com os modos de vida que ele próprio concebeu. Mas, contrariamente ao sentimento de frustração e perplexidade, este leitor será levado a compreender que as grandes transformações produzidas pela ciência e pela técnica podem levar os indivíduos à necessidade de pensar – e praticar – uma nova política, novas normas morais, novas mentalidades, novas sensibilidades.... Enfim, aquele conjunto de valores que ainda garantem ao homem sua rarefeita, mas ainda reconhecível cota de humanidade.  

 


* Welington Andrade é professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e editor da Revista Cult

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

 

:: Sobre o ciclo Mutações 2015: O Novo Espírito Utópico

Concebido e organizado pelo filósofo Adauto Novaes, o ciclo de conferências de 2015 propõe a reflexão sobre as perspectivas criadas pela revolução tecnocientífica e biotecnológica, com o objetivo de analisar os dois mundos da utopia: do humanismo e do pós-humanismo.

Participam das discussões os autores Catherine Malabou, David Lapoujade, Eugênio Bucci, Francis Wolff, Franklin Leopoldo e Silva, Frédéric Gros, Guilherme Wisnik, Jean-Michel Besnier, Jean-Pierre Dupuy, João Carlos Salles, Jorge Coli, José Miguel Wisnik, Luiz Alberto Oliveira, Marcelo Coelho, Maria Rita Kehl, Miguel Abensour, Olgária Matos, Oswaldo Giacoia Júnior, Pascal Dibie, Pedro Duarte, Renato Lessa e Vladimir Safatle.

As palestras do ciclo Mutações 2015 começam em 12 de agosto, quarta-feira, às 19h30 com a palestra de abertura “As três utopias da modernidade”, com Francis Wolff. Para mais informações, clique aqui.

 

:: Sobre o ciclo Mutações

O ciclo Mutações, um grande fórum de discussões, atua desde 2007 como ferramenta para reflexão sobre o mundo moderno, trazendo ao público uma série de encontros para debater as transformações éticas e produtivas nas relações humanas. Essa inovação de conteúdo oferece ao público a possibilidade de parar, refletir e se transformar, mesmo em um tempo tão corrido como o cotidiano que nos cerca. O curso foi reconhecido como Extensão Universitária pelo Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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