
De onde partiu seu interesse pela obra medieval A Dama e o Unicórnio e o que ela evoca nos dias de hoje sobre corpo, gênero e moralidade?
Meu interesse era, antes de tudo, climático. Morei um ano perto do Musée de Cluny, em Paris, e, como o verão estava muito quente, ia até lá por ser fresco. Então, tive o luxo de poder contemplar a tapeçaria, exibida na sala mais climatizada. Achei a obra muito linda e enigmática. Soube que havia uma ligação entre a presença do unicórnio e das mulheres, mas que a obra era cheia de ambiguidades. Na época (século 15), os coelhos eram vistos como animais libidinosos, em contraste com a pureza do unicórnio e, portanto, das mulheres. Algumas obras do passado mantêm sua potência: elas atravessam o tempo e ainda nos tocam. A Dama e o Unicórnio é uma delas: ainda se dá mais importância à virgindade das mulheres do que à dos homens, e as representações femininas ainda pendem para o lado da doçura, da calma, do cuidado. A sexualidade das mulheres ainda é vista como perigosa em muitos lugares. Acho interessante colocar em cena esses velhos mitos (unicórnios, virgens, coelhos libidinosos) para fazer uma leitura crítica e desmontar os ideais construídos por séculos de representações de gênero e de moralismo. Para mim, trata-se de convocar a beleza de uma obra – neste caso, de uma tapeçaria – ao mesmo tempo que se produz outro imaginário.
A sexualidade das mulheres ainda é vista como perigosa em muitos lugares. Acho interessante colocar em cena esses velhos mitos (unicórnios, virgens, coelhos libidinosos) para fazer uma leitura crítica.

Ao trazer os coelhos no segundo ato, você desloca a atenção para uma camada simbólica. Que paralelos você traça entre a animalidade e as fantasias projetadas sobre os corpos femininos ao longo da história da arte?
Ao convidar vários participantes a “fazerem os coelhos” no quadro final, eu debocho abertamente do paralelo entre a animalidade e o corpo feminino. Por muito tempo, a libido feminina foi vista como animal, ou seja, movida por impulsos sexuais incontroláveis (como os coelhos), e, ainda hoje, é vista como algo embaraçoso em comparação à libido dos homens. Em cena, a multidão de coelhos de diferentes idades e gêneros dilui as representações de uma sexualidade feminina desenfreada. Digamos que os coelhos – que representavam o desejo sexual na tapeçaria – se tornam no espetáculo um bando de loucos que se dão as mãos: a fantasia de uma sexualidade feminina fora de controle assume a aparência de uma farândola totalmente caótica, meio assustadora, meio delirante, mas decididamente alegre.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A dança contemporânea – pelo menos aquela à qual estou ligada na França – faz parte de um imenso campo das “danças” praticadas no âmbito social, e, embora às vezes seja um eco dele, também é seu contraponto ou tangente. Ela pode se apropriar das danças populares e abraçar as questões de uma época: a visibilidade das minorias, a crítica ao patriarcado, a descolonização das representações etc. Mas é sobretudo o que ela é capaz de inventar como práticas corporais e de relações dentro de um grupo que é, na minha opinião, o mais essencial. Em suma, são as forças em ação nos corpos em cena, e não os sinais que os bailarinos enviam ao público, que definem uma época e, por vezes, até a revolucionam: as obras radicais derrubaram com um chute violento o que era permitido – ou não – mostrar e fazer no espaço público.

Conhecido como A Dama e o Unicórnio, o conjunto medieval composto de seis tapeçarias faz uma alegoria dos cinco sentidos, mas adiciona a eles um sexto, representado de forma misteriosa no último painel sob a inscrição Ao meu único desejo. O espetáculo da artista da dança francesa Gaëlle Bourges afrouxa as tramas da obra e reacende as ambivalências da época, evocando diferentes perspectivas sobre a representação da virgindade feminina – ou da falta dela – ao longo da história da arte. Em cena, quatro performers nuas recriam a obra, que retrata, em meio a flores e animais, uma mulher e um unicórnio – criatura mitológica selvagem que carrega a fama de apenas se portar pacificamente ao lado de jovens castas. Ao tentar desvelar a pergunta incitada pelo título – o que se deseja unicamente, afinal? – o espetáculo propõe, na abundância de coelhos presentes na tapeçaria, um caminho possível, capaz de desatar um tremor coletivo.
Where does your interest in the medieval piece The Lady and the Unicorn come from and what does it evoke today about body, gender, and morality?
My interest was first and foremost driven by the weather. I lived near Musée de Cluny in Paris for a year and, as the summer was very hot, I would go there because it was cool inside. So I had the luxury of contemplating the tapestry, displayed in the most air-conditioned room. I found it very beautiful and enigmatic. I learned that there was a connection between the presence of the unicorn and women, but that the piece was full of ambiguities. At the time (15th century), rabbits were seen as libidinous animals, in contrast to the purity of the unicorn and, therefore, of women. Some works from the past remain powerful — they traverse over time and continue to move us. The Lady and the Unicorn is one of them: women’s virginity is still rendered more important than men’s, and female representations still lean towards sweetness, calmness, and care. Women’s sexuality is still seen as dangerous in many places. I think it’s interesting to put these old myths on stage (unicorns, virgins, libidinous rabbits) to provide a critical reading and dismantle the ideals of gender representations and moralism built up over centuries. For me, it’s about summoning the beauty of a piece of work — in this case, a tapestry — while producing a different imaginary.
Women’s sexuality is still seen as dangerous in many places. I think it’s interesting to put these old myths on stage (unicorns, virgins, libidinous rabbits) to provide a critical reading

By bringing in the rabbits in act two, you shift attention to a symbolic layer. What parallels do you draw between animality and the fantasies projected onto female bodies throughout art history?
By inviting several participants to “perform the rabbits” in the final section, I openly mock the parallel between animality and the female body. Women’s libido has for long been seen as animalistic — driven by uncontrollable sexual urges (like rabbits) —, and even today it is seen as something embarrassing compared to men’s libido. On stage, the multitude of rabbits of different ages and genders dilutes the representations of unbridled female sexuality. Let’s say that the rabbits — who represented sexual desire in the tapestry — become, in this show, a bunch of crazy people who hold hands: the fantasy of an unrestrained female sexuality takes on the appearance of a totally chaotic, half frightening, half delirious, but decidedly joyful farandole.
How do you see the role of dance in today’s society and what can it mobilize or reveal about our times?
Contemporary dance — at least the one I’m connected with in France — is part of an immense field of “dances” practiced in the social realm, and while it is sometimes an echo of it, it is also its counterpoint or tangent. It can appropriate folk dances and embrace the issues of an era: the visibility of minorities, criticism of patriarchy, the decolonization of representations, etc. But it is especially what it is able to produce as bodily practices and relationships within a group that is, in my opinion, the most essential aspect to it. In short, it is the forces at work in the bodies on stage, and not the signals that the dancers send to the public, that define an era and sometimes even revolutionize it. Radical pieces have forcefully kicked and disrupted what was allowed — or not — to be shown and done in the public space.
Known as The Lady and the Unicorn, the medieval set of six tapestries makes up an allegory of the five senses, plus a sixth sense mysteriously represented in the final panel under the inscription To my only desire. The show by French dance performer Gaëlle Bourges ravel this piece out and rekindles the ambivalences of that time, evoking different perspectives on the representation of female virginity — or the lack thereof — throughout art history. On stage, four naked performers recreate the piece, which depicts, amid flowers and animals, a woman and a unicorn — a wild mythological creature known for only behaving peacefully next to young maiden women. As the show strives to unravel the question raised by its title — what is one’s only desire, anyway? —, it looks to the abundance of rabbits in the tapestry to possibly unleash a collective tremor.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
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