
A obra mergulha na relação entre o brincante e o encantado. Como esse diálogo se traduz em termos coreográficos e quais reflexões ele busca proporcionar?
Antes de pensar na coreografia como gesto no espaço, o interesse orbita na construção de um estado de brincadeira e encantamento com o mundo. Há anos mergulho nos estudos do que venho chamado de movimentos de incorporação, destituindo também o peso racista e colonial sobre essa prática e palavra, no exercício de trazê-la aqui, para o lugar de in-corpo-ação , no corpo a ação, no corpo a oração, no corpo orar a ação, incorporar a ação. Um dos ensinamentos da encantaria é a passagem, é o acontecimento, é a aparição e desaparição. O que experimentamos em Brinquedo é essa dimensão da presença em passagem, da incorporação de memórias e presenças para além das humanas. Produzimos sonoridades, músicas, gestualidades em tempo real, numa atualização da memória. Nos colocamos à disposição da memória que quer atravessar aquele momento. Tecnologias continuadas por diversos povos em Abya Yala [na língua kuna, significa “terra madura”, “terra viva” ou “terra que floresce”, e é sinônimo de América], no continente africano e em tantas outras comunidades e sociedades que continuam a existir, apesar do assombro colonial.
Reaprender a brincar é reaprender a estar com o mundo, é uma das chances de refabular as narrativas e preparar novos futuros

O espetáculo é dividido em três fluxos de brincadeiras. Qual a importância do brincar como forma de interação com o mundo hoje?
Eu e Ruan Franciso, que dividimos a criação, falamos muito que essa obra é para a infância de todas as idades e tempos. O território de Pindorama, a ilha de Upaon Açu, são territórios de brincantes desde tempos pré-coloniais. A brincadeira não só como jogo infantil, mas como manifestação tradicional, em que se continua pela oralidade, pelo gesto e pelo som das memórias e saberes. Aprende-se brincando de fazer e não fazendo de brincadeira, como bem sugere Nêgo Bispo. Penso que, de maneira bem superficial, quando a gente retoma a brincadeira, a gente retoma a ritualidade da ação, dos acordos, da presença, da fé no invisível, na fabulação. A ação de ritualizar a presença traz o corpo para o agora: a gente vivencia o tempo. O tempo tão cooptado pelas maquinarias da colonização e da industrialização. Reaprender a brincar é reaprender a estar com o mundo, é uma das chances de refabular as narrativas e preparar novos futuros.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Eu venho de um território em que se dança sobre qualquer aspecto, da reverência à ação política. Não necessariamente a dança que se entende como cênica, mas a dança que se faz como lugar de comunicação entre mundos, visíveis e invisíveis. Apesar de ser atravessado pela dança como linguagem artística, sou antes de tudo um corpo nascido e criado em território amazônico de confluências afropindorâmicas. E, a partir do encontro, entre os espaços ditos “oficiais” da arte e os territórios ancestrais, penso que um dos principais papéis da dança é a possibilidade de articular trânsitos. Acredito que dançar é uma revolta necessária, uma insurreição diante da insistente tentativa de sistematização, padronização e produtificação do nosso existir. Ultimamente, meu maior ensinamento da dança é o de dançar para as estrelas. Enquanto for possível aprender a lembrar por que diversos povos fazem isso, percebo que está resguardada no nível da forma (gesto) e no nível da essência (fundamento) a continuidade dos modos, costumes e tantas outras coisas de um povo.

Esta obra para a infância de todas as idades mergulha na relação entre o brincante e o encantado. A partir de saberes afrodiaspóricos e originários, a criação, na busca por adiar possíveis fins de mundos, encontra em imagens, sons, danças e palavras estratégias para sustentar o céu – ou convidar à escuridão fecunda dos sonhos. Para isso, a obra cruza, em sua composição, dividida em três fluxos de brincadeiras, as práticas de Tiyê Macau sobre movimentos de in-corpo-ação e a pesquisa de dança sonora e digital transmídia de Ruan Francisco. Surgem, assim, paraquedas coloridos para adiar a queda iminente e conceber, entre a imagem e o gesto, possibilidades de recuperar ou continuar a existência de uma fauna-flora encantada.
The work explores the relationship between play and enchantment. How does this dialogue translate choreographically, and what reflections does it offer?
Before thinking of choreography as a gesture in space, the focus is on building a state of play and enchantment with the world. For years, I’ve immersed myself in what I’ve been calling “acts of em-bodi-ment” — reclaiming the term by stripping away its colonial and racist weight. In this practice, I bring it into the space of em-body-ment: in the body, there is action; in the body, there is prayer; in the body, prayer becomes action. One of the lessons of enchantment is the passage, the event, the appearing and disappearing. What we experience in Toy is this dimension of presence in transit, of embodying memories and presences beyond the human. We create soundscapes, music, and gestures in real time, updating memory. We offer ourselves to the memory that seeks to cross that moment. These are technologies continued by many peoples of Abya Yala [Kuna for “mature land,” or “land that blooms,” a synonym for the Americas], in the African continent, and other communities that continue to exist despite colonial horror.
Relearning how to play is relearning how to be in the world — one of our chances to reimagine narratives and prepare for new futures

The performance is structured in three play flows. What is the significance of play as a way of interacting with the world today?
Ruan Francisco and I, who co-created the work, often say it’s for childhoods of all ages and times. The land of Pindorama and the island of Upaon Açu are territories of players since pre-colonial times. Play is not only a children’s game but a traditional manifestation, passed on through orality, gesture, and the sound of memory and knowledge. As Nêgo Bispo wisely puts it, we learn by playing at doing — not by making a game of what we do. On a very basic level, I believe that when we return to play, we also return to the ritual nature of action — to agreements, presence, belief in the unseen, and in fabulation. To ritualize presence is to bring the body into the now — to experience time itself. A time long co-opted by the machinery of colonization and industrialization. Relearning how to play is relearning how to be in the world — one of our chances to reimagine narratives and prepare for new futures.
How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
I come from a land where people dance for everything: reverence, political action. Not necessarily dance as understood in the theatrical sense, but as a means of communication between worlds, visible and invisible. Though I work with dance as an art language, I am first and foremost a body born and raised in an Amazonian territory of Afropindorâmica confluences. From the encounter between so-called “official” art spaces and ancestral territories, I believe dance’s main role is to articulate transit. Dancing is, to me, a necessary rebellion — an insurrection against the systematic attempt to standardize and commodify our existence. Lately, my greatest dance lesson has been to dance for the stars. As long as we remember why so many peoples do this, we preserve continuity — in form (gesture) and in essence (foundation ) — of ways, customs, and so much more of a people.
This piece for childhoods of all ages explores the connection between play and enchantment. Rooted in Afro-diasporic and Indigenous knowledge, the work seeks to delay possible ends of worlds by finding in images, sounds, dances, and words strategies to uphold the sky — or to invite the fertile darkness of dreams. Divided into three play flows, the work weaves together Tiyê Macau’s em-bodi-ment practices and Ruan Francisco’s transmedia sonic. Colorful parachutes appear to delay the imminent fall and, between image and gesture, open possibilities for recovering or continuing the existence of an enchanted fauna-flora.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.