
Ntanga parte de pesquisas sobre a cosmopercepção bantu. Quais aspectos desse estudo delineiam o espetáculo?
Mergulhar no cosmograma bakongo é aprender sobre as coisas mais essenciais e fundamentais da existência humana. Desenhamos uma metodologia intuitiva, circular e espiritual a partir dos quatro estágios da dikenga (o cosmograma bantu, baseado nas fases do Sol). Dançando, sonhando e cantando, aproximamos muitos conceitos do mundo bantu. Nos encontramos em um espaço de reciprocidade com o mistério, na construção de cada movimento, adereço, sonoridade e fábula dessa cartografia espiralar. Entendemos que esse contínuo processo, que começamos a “escrever e dançar” aqui, irá nos acompanhar por muito tempo, como um amuleto de proteção.
No espetáculo, essa filosofia (bantu) se traduz na maneira como dança, palavra e música não são apenas expressões estéticas, mas práticas de evocação

Há uma busca em subverter o mundo submetido pela colonialidade, além de uma investigação sobre o tempo e a ancestralidade, com metáforas como a do mar. Como isso se traduz em cena?
Aprendemos com o universo bantu que existem tantas formas de ver o mundo quantas são as nossas possibilidades de existir. Uma delas está no cosmograma bakongo, que compreende o tempo como uma espiral, não apenas uma linha reta e progressiva. Essa concepção mostra que passado, presente e futuro se interpenetram. Ao invés de entendermos a ancestralidade como algo distante, ela se torna uma presença viva que molda o agora e nos orienta. No espetáculo, essa filosofia se traduz na maneira como a dança, a palavra e a música não são apenas expressões estéticas, mas práticas de evocação. Cada gesto e som são convites para reencantar e tensionar narrativas coloniais. Isso acontece por meio de cartografias espiralares (evocando ciclos de nascimento, morte e renascimento), ritmos e objetos como cabaças, tecidos azuis e máscaras. Reencontramos memórias insurgentes e reafirmamos a potência de existirmos em nossas próprias cosmologias. O mar, kalunga para os bakongo, é uma presença central – um espaço liminar que conecta mundos. Ele surge através da cor azul, que banha a cena como uma metáfora viva, e por ser a linha que separa e costura dimensões: o visível e o invisível, o tempo dos vivos e o tempo dos ancestres. A água, profundamente ligada às espiritualidades negras, se faz presente nos corpos, nos tecidos, nas cabaças, nas vozes e nos instrumentos percussivos, criando uma paisagem sensorial e poética sobre os ciclos da vida.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
Dentro da minha perspectiva, a dança se traduz como feitiço. Um lugar de profundo encantamento, e alumbramento da matéria, que, assim como nos tempos de minhas avós – no chão do terreiro –, continua garantindo a manifestação do espírito livre, da vitalidade, do sonho e da fabulação em nossos corpos. Pensando no corpo também como território de retomada, percebo a dança como uma importante aliada. Precisamos dela mais do que nunca para permitir que o nosso èmí (sopro primordial) não perca sua força, diante de todos os fins.

Criado a partir de uma pesquisa filosófica em torno da cosmopercepção bakongo (grupo étnico da África central), o espetáculo evoca as espirais que abrigam as memórias negras. A temporalidade, aqui, não é entendida como uma linha reta e progressiva, e sim como uma espiral, em que passado, presente e futuro se interpenetram. Já a ancestralidade é vista como uma presença viva, que serve de guia. Em cena, dança, palavra, música e voz são feitiços que buscam imaginar mundos apartados da colonialidade. A imagem do mar, que simboliza o espaço limiar entre mundos, o tempo dos vivos e o dos ancestres, está presente nos tecidos, nos tons azulados e na sonoridade de instrumentos percussivos. Transformando sons, movimentos e provérbios em reminiscências negras, o espetáculo reafirma a potência de cosmologias próprias.
Ntanga stems from research into the Bantu cosmoperception. Which aspects of this study shaped the piece?
Diving into the Bakongo cosmogram means learning about what is most essential to human existence. We developed an intuitive, circular, spiritual methodology based on the four stages of the dikenga (the Bantu cosmogram, which follows the Sun’s path). Through dance, dreams, and song, we connected with multiple Bantu concepts. We found ourselves in reciprocal exchange with mystery as we built each movement, object, sound, and fable within this spiral cartography. We see this ongoing process — this act of “writing and dancing” — as something that will accompany us for a long time, like a protective amulet.
On stage, this philosophy (Bantu) emerges as dance, spoken word, and music that act not just as aesthetic expressions but as practices of evocation

The piece challenges colonial structures while exploring concepts of time and ancestry, using metaphors such as the sea. How does this take shape on stage?
From the Bantu cosmoperception, we learn that there are as many ways of seeing the world as there are ways of existing. One such view is the Bakongo cosmogram, which understands time as a spiral rather than a linear progression. It shows that past, present, and future interpenetrate. Ancestry is not distant, but a living presence that shapes and guides the now. On stage, this philosophy emerges as dance, spoken word, and music that act not just as aesthetic expressions but as practices of evocation. Every gesture and sound becomes an invitation to re‑enchant and challenge colonial narratives. Spiral cartographies — evoking cycles of birth, death, and rebirth — combine with rhythms and objects such as gourds, blue fabrics, and masks. In doing so, we reclaim insurgent memories and affirm the power of our own cosmologies. The sea, or kalunga to the Bakongo, is a central presence — a liminal space connecting worlds. It appears through the color blue, bathing the stage as a living metaphor, and as the line that both separates and binds dimensions: the visible and the invisible, the time of the living and the time of the ancestors. Water, deeply tied to Black spiritualities, permeates bodies, fabrics, gourds, voices, and percussion instruments, creating a sensorial and poetic landscape of life cycles.
How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
From my perspective, dance is a spell — a space of profound enchantment, where matter itself is illuminated. As in the times of my grandmothers, on the earthen floor of the terreiro, dance continues to sustain the free spirit, vitality, dreams, and fabulation in our bodies. Seeing the body as a territory of reclaiming, I understand dance as an essential ally. More than ever, we need it to ensure that our èmí (primordial breath) does not lose its strength in the face of so many endings.
Created from a philosophical investigation into the Bakongo cosmoperception (an ethnic group from Central Africa), Ntanga evokes the spirals that hold Black memories. Time is seen not as linear and progressive, but as a spiral in which past, present, and future interpenetrate. Ancestry is understood as a living presence that serves as a guide. On stage, dance, spoken word, music, and voice become spells that imagine worlds beyond coloniality. The sea — a threshold between realms and between the time of the living and the ancestors — appears in blue fabrics, objects, and percussive sounds. By turning sounds, movements, and proverbs into Black reminiscences, the performance reaffirms the power of self‑determined cosmologies.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
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