
A obra parte da figura dos cordeiros, trabalhadores do Carnaval. O que eles representam para você?
Os cordeiros representam a fronteira entre classes, entre mundos que se tocam e se afastam. São corpos que, literalmente, seguram a corda para manter a separação entre quem pode e quem não pode [participar da festa]. Os cordeiros refletem, de forma simbólica e concreta, a estrutura desigual da sociedade brasileira. Enquanto garantem a segurança e o funcionamento da festa, esses profissionais são submetidos a condições precárias de trabalho. Como muitos trabalhadores informais no Brasil, eles ocupam uma posição invisibilizada, sustentando a celebração sem desfrutar plenamente dela. Essa realidade expõe as contradições entre o brilho, o glamour e a dureza da vida de quem segura e empurra a festa com as próprias mãos.
Ao destacar os trabalhadores do Carnaval e as danças proibidas, a obra constrói uma nova mitologia popular, uma fusão entre realidade e fantasia

Ao colocar em cena aspectos de manifestações populares historicamente marginalizadas, que outras narrativas e imaginários são criados?
Convocamos memórias e festas que ficaram à margem, mas que sustentam a cultura do nosso país. Exaltamos o funk, o carimbó, a festa junina, o surdo da Estação Primeira, as estrelas da Chácara do Céu, os fogos que estalam, as luzes que às vezes invadem os olhos e confundem violência e brilho. Evocamos esses imaginários para criar uma dança que busca celebrar a potência das fricções que surgem do esquecimento e da resistência. É uma dança para imaginar futuros a partir dos rastros do que tentaram apagar. O espetáculo mobiliza narrativas e imaginários que rompem com a hegemonia de uma estética eurocêntrica na dança contemporânea. Traz à tona memórias e corpos silenciados, celebrando danças periféricas como tecnologias de criação. Esses elementos evocam territórios afetivos, rituais religiosos, festas populares e experiências urbanas que formam um inventário de resistência e invenção. Ao destacar os trabalhadores do Carnaval, as danças proibidas, os sons dos estalinhos e apitos, e símbolos como LEDs e cordas, a obra constrói uma nova mitologia popular, uma fusão entre realidade e fantasia na qual surgem figuras como “uma Santa de dreads”, “Omolu de cordas” ou “uma baiana dançando funk”. Esses novos imaginários afirmam a potência criativa de corpos dissidentes e diaspóricos, transformando esquecimento e violência em celebração. Deslocam o olhar para outras formas de beleza, presença e protagonismo.
Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A dança é um lugar de escuta e invenção. Um modo de lidar com o que foi silenciado, esquecido ou proibido. Em um tempo no qual tantas vozes e corpos seguem sendo marginalizados, a dança pode mobilizar memórias, afetos, histórias. Dançar hoje é um ato de reinvenção, política e sensível. É uma forma de afirmar outras maneiras de estar no mundo, especialmente quando essas danças nascem de corpos pretos e periféricos. As danças da afrodiáspora carregam saberes ancestrais e estratégias de sobrevivência que foram historicamente silenciados. Essas expressões culturais, potentes em herança, seguem enfrentando estigmatização e desvalorização no cenário brasileiro. Ainda assim, a dança insiste. Ela convoca outros modos de vida, outras formas de comunhão, de liberdade e de criação.

No Carnaval baiano, o cordeiro é o trabalhador que segura a corda que delimita o espaço do trio e separa os foliões da pipoca e do “camarote”. Essa figura, que representa a fronteira entre classes, é o ponto de partida para a criação do espetáculo idealizado e dançado por Alan Ferreira e Tony Hewerton. Em cena, a corda surge como matéria, símbolo e motor do movimento dos performers, que constroem, enquanto rodopiam, novos imaginários para corpos dissidentes e diaspóricos. Além do Carnaval, outros festejos populares brasileiros, como as festas juninas, as festas de terreiro e os bailes funks, são ativados, evocando um inventário de afeto, resistência e invenção. Promovendo a afirmação da vida, em contraste com a destruição e a morte, a obra dá visibilidade a um corpo que historicamente ficou à margem do protagonismo e recupera Brasis que dialogam entre si.
Your work starts from the figure of the cordeiros, Carnival workers. What do they represent to you?
The cordeiros represent the boundary between social classes, between worlds that touch and drift apart. They are bodies that, quite literally, hold the rope that separates those who can from those who cannot take part in the celebration. Cordeiros reflect, symbolically and concretely, the unequal structure of Brazilian society. While ensuring the safety and functioning of the party, these professionals face precarious working conditions. Like many informal workers in Brazil, they hold an invisible position, sustaining the celebration without being able to fully enjoy it. This reality exposes the contradictions between the glamour and the grit of those who push and hold up the party with their own hands.
By highlighting Carnival workers and forbidden dances, the work builds a new popular mythology that fuses reality and fantasy

By bringing aspects of historically marginalized popular expressions to the stage, what new narratives and imaginaries are created?
We summon memories and celebrations that have been pushed to the margins, yet they are what sustain the culture of our country. We exalt Brazilian funk, carimbó, June religious festivities, the surdo of Estação Primeira, the stars of Chácara do Céu, the fireworks that pop, the lights that sometimes overwhelm our eyes and blur the line between violence and brilliance. We invoke these imaginaries to craft a dance that celebrates the power of frictions that arise from forgetting and from resistance. It is a dance that imagines the future through traces of what they tried to erase. The performance brings forth narratives and visions that challenge the dominance of a Eurocentric aesthetic in contemporary dance. It brings to light silenced bodies and memories, celebrating peripheral dances as technologies of creation. These elements evoke emotional geographies, religious rituals, popular festivals, and urban experiences that form an archive of resistance and invention. By highlighting Carnival workers, forbidden dances, the sounds of fireworks, snappers and whistles, and symbols like LEDs and ropes, the work builds a new popular mythology, a fusion of reality and fantasy, where figures like “a dreadlocked saint,” “Omolu with ropes,” or “a baiana dancing funk” can emerge. These new imaginaries affirm the creative power of dissident and diasporic bodies, turning absence and violence into celebration. They shift our gaze toward new forms of beauty, presence, and protagonism.
How do you see the role of dance in today’s society and what can it mobilize or reveal about our times?
Dance is a space for listening and invention. A way to deal with what has been silenced, forgotten, or forbidden. In a time when so many voices and bodies continue to be marginalized, dance can activate memories, emotions, and histories. To dance today is an act of reinvention — both political and sensitive. It is a way to affirm other ways of being in the world, especially when these dances come from Black and peripheral bodies. Dances of the African diaspora carry ancestral knowledge and survival strategies that have historically been silenced. These cultural expressions, rich in heritage, still face stigma and devaluation in Brazil. And yet, dance persists. It calls forth other ways of living, other forms of communion, freedom, and creation.
In Bahia’s Carnival, cordeiros are the workers who hold the rope that divides paying and non-paying revelers within the trio elétrico area . This character, symbolizing the divide between social classes, inspired the performance by Alan Ferreira and Tony Hewerton. On stage, the rope becomes material, symbol, and engine of movement, as the performers spin and create new imaginaries for dissident and diasporic bodies. In addition to Carnival, other Brazilian popular festivities, such as June religious festivities, Afro-Brazilian religious gatherings, and Brazilian funk parties, are evoked, forming an inventory of affection, resistance, and invention. Affirming life in contrast to destruction, the piece highlights bodies historically pushed to the margins and brings multiple “Brazils” into view.
Confira a entrevista com com DJ Michell.
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