Reino dos Bichos e dos Animais, Esse é o Meu Nome | Bienal Sesc de Dança

02/09/2025

Compartilhe:
Foto: Gil Douglas

🇧🇷 🇺🇸

Entrevista com René Loui | Concepção, direção coreográfica e direção artística

O espetáculo é a segunda obra da Trilogia em Dança-Tragédia desenvolvida pelo coletivo. De que forma a “dança” e a “tragédia” são abordadas e ressignificadas?
Não nos interessam as tragédias gregas eurocentradas. Estamos falando das tragédias cotidianas que atravessam a sociedade contemporânea e se instalam nos corpos de pessoas cujas existências são constantemente questionadas por fugirem aos padrões ditos como normativos. Nossa Dança-Tragédia se debruça sobre as tragédias de subjetividades dissidentes, diversas, marginalizadas, não apenas no sentido literal da marginalidade, mas no deslocamento forçado para as margens do que se considera humano, digno ou visível. A abordagem que propomos parte de uma dança que se aproxima do documental: trazemos para a cena fatos e histórias que não são comumente narradas. Nossa dança não busca ilustrar sofrimento, mas expor os dispositivos que produzem a desumanização e, a partir disso, inventar novas formas de presença. Não trabalhamos com um método coreográfico rígido, mas com a constatação urgente de um tempo que precisa mudar, e com a convicção de que o corpo, em sua falha e em sua insistência, pode ser a fissura onde esse mundo começa a se reconfigurar. É nesse encontro entre dança e tragédia que nos interessa habitar. Um lugar onde a experiência da recusa se torna matéria para fabular outros modos de viver, resistir e dançar.

Nossa dança não busca ilustrar sofrimento, mas expor os dispositivos que produzem a desumanização e, a partir disso, inventar novas formas de presença

Reino dos Bichos e dos Animais. Foto: Brunno Martins
Foto: Brunno Martins

O trabalho questiona a realidade enfrentada por grupos sociais historicamente marginalizados ou excluídos. Quais as principais estratégias cênicas e coreográficas utilizadas e que novos olhares elas lançam sobre esse debate?
O trabalho reúne corpos e subjetividades diversas não como ilustração, mas como ato político e ético de trazer à tona as realidades de quem segue sendo invisibilizado. Nossa construção poética trata a acessibilidade não como adorno, mas como elemento estético fundamental, integrado à dramaturgia e à composição coreográfica. Entre as principais estratégias, utilizamos a exposição de corpos dissidentes em suas singularidades, a repetição exaustiva como denúncia das violências que se perpetuam, e a desmontagem de códigos coreográficos que domesticam o movimento. Essa abordagem lança novas perspectivas para a dança ao deslocar a cena para um território onde a diferença não é tolerada ou assimilada, mas afirmada como força motriz.

Como você enxerga o papel da dança na sociedade atual e o que ela pode mobilizar ou revelar sobre nossos tempos?
A sociedade em que vivemos está adoecida. Muitos corpos seguem sendo descartados, vulnerabilizados e assassinados cotidianamente por estruturas de poder que naturalizam a violência, a desigualdade e a desumanização. A dança e a arte, de forma mais ampla, ocupam, nesse cenário, o papel de interromper a normalidade brutal que insiste em silenciar diferenças. A dança pode mobilizar fissuras no presente, escancarar as contradições que preferimos ignorar, criar espaços de sensibilidade onde o outro possa ser visto sem filtros normativos. Nesse sentido, a dança vai além da denúncia, porque os fatos que trazemos já estão escancarados para quem se dispõe a perceber. Nossa dança convoca outros modos de habitar o mundo e nos lembra que não há futuro possível enquanto persistirem as violências que matam, silenciam e invisibilizam nossas existências. Parafraseando Renata Carvalho: “Queremos dançar futuros possíveis”.

Reino dos Bichos e dos Animais. Foto: Renato Mangolin
Foto: Renato Mangolin

Sinopse

Reino dos Bichos e dos Animais, Esse é o Meu Nome

O espetáculo se constrói a partir de um gesto de escuta e evocação de Stella do Patrocínio (1941-1992), poeta negra que viveu por quase três décadas em um manicômio. Suas poesias revelam as agruras de um corpo preto em cárcere, e são essas palavras que permeiam a montagem, segunda obra da Trilogia em Dança-Tragédia, criada pelo Coletivo CIDA. A peça propõe uma discussão sobre o que pode – ou não – ser considerado dança ou teatro, além de questionar a estigmatização, a desumanização, o extermínio e a invisibilidade de diversos grupos sociais historicamente marginalizados. O falatório de Stella se entrelaça à presença dos corpos em cena, produzindo um campo de fricção entre linguagem e impossibilidade, identidade e alteridade. Numa tentativa de dizer com Stella, e não por ela, a palavra se arrasta, tropeça, se esvai; e o corpo dança como quem recusa a domesticação.


🇧🇷 🇺🇸

Interview with René Loui | Concept, choreographic direction, and artistic direction

This piece is the second part of the Dança-Tragédia Trilogy developed by Coletivo CIDA. How are “dance” and “tragedy” approached and redefined in the work?
We are not interested in Eurocentric Greek tragedies. We are addressing the everyday tragedies that perfuse contemporary society and inhabit the bodies of people whose very existence is constantly questioned for not conforming to so-called normative standards. Our Dance-Tragedy delves into the tragedies experienced by dissident, diverse, and marginalized subjectivities — not only in the literal sense of marginality, but in the forced displacement to the margins of what is considered human, worthy, or visible. The approach we propose stems from a dance that borders on the act of document: we bring to the stage facts and stories that are rarely told. Our dance is not aimed at illustrating suffering, but at exposing the mechanisms that produce dehumanization and, from that, inventing new forms of presence. We do not work with a rigid choreographic method, but from the urgent realization that the times must change, and with the conviction that the body, in its failure and its persistence, can be the crack where this world begins to reshape itself. It is in this intersection of dance and tragedy that we choose to dwell. A place where the experience of refusal becomes material for imagining new ways of living, resisting, and dancing.

Our dance is not aimed at illustrating suffering, but at exposing the mechanisms that produce dehumanization and inventing new forms of presence

Reino dos Bichos e dos Animais. Foto: Renato Mangolin
Foto: Renato Mangolin

The piece questions the reality faced by historically marginalized or excluded social groups. What are the main scenic and choreographic strategies used, and what new perspectives do they bring to this discussion?
The show brings together diverse bodies and subjectivities not as illustration, but as a political and ethical act of bringing to light the realities of those who remain unseen. Our poetic construction treats accessibility not as an accessory, but as a fundamental aesthetic element, integrated into the dramaturgy and choreographic composition. Among our main strategies are the exposure of dissident bodies in their singularities, the exhaustive repetition as a denunciation of ongoing violence, and the deconstruction of choreographic codes that seek to tame movement. This approach opens new perspectives for dance by shifting the scene into a space where difference is not tolerated or assimilated, but affirmed as a driving force.

How do you see the role of dance in today’s society, and what can it mobilize or reveal about our times?
The society we live in is diseased. Many bodies continue to be discarded, made vulnerable, and killed daily by power structures that normalize violence, inequality, and dehumanization. In this context, dance and art more broadly serve to interrupt the brutal normalcy that insists on silencing difference. Dance can open fissures in the present, expose contradictions we prefer to ignore, and create spaces of sensitivity where the other can be seen beyond normative filters. In this sense, dance goes beyond denunciation, because the facts we bring forth are already glaring to those who are willing to see. Our dance calls for other ways of inhabiting the world and reminds us that there is no possible future as long as the violence that kills, silences, invisible, and renders our bodies persists. To paraphrase Renata Carvalho: “We want to dance possible futures.”

Synopsis

The Kingdom of Beasts and Animals, This is My Name

This performance is built from a gesture of listening and evocation of Stella do Patrocínio (1941–1992), a Black poet who spent nearly three decades in a psychiatric institution. Her poems reveal the suffering of a Black body in confinement and permeate the creation, the second work in Coletivo CIDA’s Dança-Tragédia Trilogy . This piece raises questions about what can or cannot be considered dance or theater, while confronting stigmatization, dehumanization, extermination, and the invisibility of historically marginalized groups. Stella’s voice merges with the presence of bodies on stage, generating tension between language and impossibility, identity and otherness. It is an attempt to speak with Stella, not for her. The words stumble, falter, dissipate, and the body dances as an act of resistance to domestication.

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.